Via Marco Zero Conteúdo/ Giovanna Carneiro

O que se viu no centro do Recife, neste sábado 20 de novembro, foi uma verdadeira aliança entre movimentos sociais e entidades civis, ligados a diferentes causas, empenhados em construir um futuro onde a violência e a morte não serão mais a sina do povo brasileiro.

Independente de raça, classe e gênero, os manifestantes presentes na Marcha da Consciência Negra, que aconteceu no histórico pátio do Carmo, defenderam que a luta antirracista precisa estar interligada a uma pluralidade de outras lutas, atravessadas pela violência que é fruto do racismo estrutural do Brasil. Por uma moradia digna, pelo fim da fome, por uma infância tranquila e saudável, por uma educação de qualidade, pelo fim da violência policial e por outras diversas causas, esse foi o tom das falas dos representantes de organizações sociais que seguraram o microfone no pátio e ao longo do trajeto até o Marco Zero, no Bairro do Recife.

Faremos Palmares de novo

Ao longo da concentração, entre 14h e 16h, foi possível perceber a diversidade de bandeiras presentes. A pluralidade, contudo, não dificultou o clima de unidade dos que ali estavam. Em torno do mote do racismo, concentrados no local que há 40 anos foi palco da Missa dos Quilombos, foi possível perceber uma verdadeira consciência da luta antirracista e seus atravessamentos.

“É uma data que é de protesto e de resistência, mas é também uma data de confraternização de toda a diversidade do que é o movimento no Brasil e neste ano, especialmente, numa conjuntura política de um Governo Federal que é extremamente perverso com a população negra”, declarou Edilson Silva, presidente da União de Negros pela Igualdade (Unegro) no Recife.

Pátio do Carmo é espaço simbólico na luta antirracista no Brasil. Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

O clamor pelo Fora Bolsonaro e Mourão foi bastante presente durante toda a manifestação, mas, também houve um apelo dos manifestantes para que a estrutura do racismo, que segue se perpetuando ao longo de todos os anos independente de governos, não fosse esquecida.

“Para nós, é muito importante que essa grande articulação dos movimentos sociais não se resuma ao dia de hoje por causa do Fora Bolsonaro, porque a luta contra o racismo no Brasil é muito mais do que tirar Bolsonaro. É claro que, nesse momento, tirar Bolsonaro é uma prioridade, mas é importante compreender que isso não vai acabar com o racismo”, disse Mônica Oliveira, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e da Coalizão Negra por Direitos.

As referências ao Quilombo dos Palmares e aos maiores símbolos nacionais de luta anti escravocrata, Zumbi e Dandara, estiveram bastante presentes nos atos. Os gritos de “faremos Palmares de novo” estava traduzido em palavras, mas também de forma simbólica com a forte presença dos movimentos de luta por moradia no ato do Dia da Consciência Negra.

Se Zumbi e Dandara lutaram para construir uma vida digna e feliz para o povo negro e tinham na garantia de um lugar seguro para morar e prosperar o seu maior objetivo, o crescimento do protagonismo dos movimentos por moradia é a prova de que existe um saber ancestral que segue potente no povo negro.

“Essa luta não é só do povo negro, ela também é de todo o povo pobre. Nós acreditamos no movimento popular e temos a consciência que precisamos lutar para que as transformações necessárias aconteçam na nossa sociedade”, afirmou Vítor Henrique, do Movimento de Luta por Terra e Trabalho (MLTT).

 

A dor e a luta das mulheres negras

A Marcha do Dia da Consciência Negra foi puxada pelas mulheres negras. Durante todo o percurso, foi notável o protagonismo das mulheres, tanto na organização quanto na condução da manifestação.

“As mulheres negras são depositárias da resistência negra, depositárias do nosso sagrado, depositária da nossa cultura e as mulheres negras sempre tiveram um papel político importantíssimo. São as organizações de mulheres negras que têm atuado de forma mais consistente, mais qualificada e mais permanente e sistematicamente nessa luta contra o racismo”, declarou Mônica Oliveira.

Mulheres negras assumiram a linha de frente do ato. Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Para muitas dessas mulheres negras, o dia 20 de novembro é uma triste e dolorida lembrança de violências e injustiças sofridas pelos seus filhos. Emocionada, Mirtes Renata, mãe do menino Miguel, morto quando estava sob cuidados da patroa em junho de 2020, esteve presente no ato e fez questão de reforçar a importância da luta antirracista. “Eu tô aqui hoje para, junto com os movimentos sociais, tentar combater esse racismo que vem destruindo nossos povos. A minha luta não é só por justiça por Miguel, mas também pela vida das nossas crianças negras que sofrem com o racismo até dentro do judiciário ”, disse.

Maria do Carmo Arcanjo, mãe de André Arcanjo, homem negro preso sob acusação de latrocínio, também esteve presente no ato clamando por justiça pelo seu filho. “Meu filho está preso injustamente, ele é um homem bom”, disse a mãe. Amigos e familiares de André carregaram faixas durante a manifestação e demonstraram toda a indignação com o caso.

Ao final do ato, no Marco Zero do Recife, os manifestantes acenderam velas, ligaram as lanternas dos celulares, e fizeram um jogral em homenagem às vítimas do racismo. Em seguida, após gritos carregados de revolta, um silêncio de dor marcou o minuto final da manifestação.

Mirtes Renata denuncia que o racismo continua presente no Judiciário. Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

 

O Pátio do Carmo e a Consciência Negra

Há exatos 40 anos, muito antes do 20 de Novembro fazer parte do calendário escolar e se tornar feriado em vários estados, o pátio do Carmo foi cenário de uma das mais marcantes celebrações da data. No domingo, 22 de novembro de 1981, milhares de pessoas lotaram o espaço do centro do Recife, para assistir à Missa dos Quilombos, articulada por dom Hélder Câmara e dom Pedro Casaldáliga, e celebrada por dom José Maria Pires, o arcebispo negro de João Pessoa que era conhecido por Dom Pelé.

Com Milton Nascimento interpretando músicas compostas especialmente para a celebração, dezenas de dançarinos e dançarinas proporcionavam um inédito espetáculo de ritmos afros, misturando elementos do cristianismo e do candomblé. A homilia de dom José Maria Pires é considerada por teólogos como um marco na virada da relação entre a Igreja Católica e a população negra brasileira. “No passado, a Igreja não foi suficientemente solidária com a causa dos escravos, não condenou a escravidão do negro, não denunciou a tortura de escravos, não amaldiçoou o pelourinho”, pregou o arcebispo da Paraíba, depois de afirmar que o público presenciava “os sinais de uma nova aurora”.