Fernando Silva¹

Os autores do livro “Como as Democracias Morrem” (LEVITSKY e ZIBLATT, 2018) apresentam um conjunto de informações para uma análise profunda da democracia em vários países. Apesar de não ter uma abordagem específica sobre o Brasil, traz uma conclusão que se aplica à realidade nacional, quando afirmam que “o retrocesso democrático hoje começa nas urnas”. No caso do Brasil, não só. 

Nesta perspectiva, um exemplo emblemático é o controverso processo de afastamento da ex-Presidente Dilma Rousseff. Primeiro, por não existirem consensos jurídicos e políticos sobre se as pedaladas fiscais são suficientes para ensejar impeachment. Pedaladas fiscais, aliás, foram praticadas pelos ex-presidentes FHC e Lula. Segundo, de que a Presidente Dilma foi “demitida”, não sofrendo, a rigor, impeachment. A distinção é simples. Se tivesse ocorrido o último, estaria impedida de concorrer nos processos eleitorais por oitos anos. Como se sabe, ela concorreu, em 2018, ao Senado Federal pelo Estado de Minas Gerais. Portanto, o que houve foi um golpe parlamentar, alimentado por parcela expressiva da grande mídia e do capital financeiro, sob anuência do Superior Tribunal Federal.   

A desconstrução da democracia prossegue no Governo do Presidente Jair Bolsonaro, tendo no Decreto Federal N.º 9.759/2019 um ataque direto e perverso ao Estado Democrático e de Direito instituído pela CF/1988, especialmente em relação ao sistema de participação política. O referido decreto tem a finalidade de extinguir e traz diretrizes, regras e limitações para os colegiados (conselhos, comitês e comissões de direitos e de políticas públicas) vinculados à administração pública federal. 

De acordo com levantamento do site UOL no último dia 26 de julho, os colegiados nacionais tiveram a redução de 465 para 249 no número de integrantes, sendo que a participação social teve a extinção de 97 representações, passando de 201 para 104 vagas. A redução da participação é gravíssima e atinge a representação da esfera governamental e representações da sociedade civil, afetando as políticas de segurança alimentar e nutricional, drogas, erradicação do trabalho escravo, direitos da pessoa idosa, população em situação de rua, meio ambiente, tráfico de pessoas, cinema, cultura, livro e leitura. 

Reduzir ou extinguir a participação cidadã é um ataque à democracia e empobrece e enfraquece o Estado Democrático e de Direito, com sua diversidade política e social. Agora é o momento de sinalizar duas possibilidades de articulação e mobilização jurídica e política para o fortalecimento e o aperfeiçoamento da democracia brasileira.  

A primeira, aponta para que as organizações da sociedade civil, movimentos sociais, trabalhadores, pesquisadores, CNBB, OAB, partidos políticos, fóruns, redes, conselhos, comitês e comissões façam ampla mobilização e articulação para que o decreto presidencial seja julgado inconstitucional pela Superior Tribunal Federal (STF). 

A segunda possibilidade guarda relação para que a proposição das organizações, movimentos, articulações e redes da sociedade civil de reforma do sistema político seja uma prioridade do Estado e da Sociedade. A proposição visa o fortalecimento da democracia direta (plebiscito, referendo e projetos de iniciativa popular), fortalecimento da democracia participativa, incluindo incidência na definição das pautas prioritárias do Poder Legislativo, nas políticas econômicas e de desenvolvimento, no aprimoramento da democracia representativa, democratização da informação, comunicação e na democratização e transparência do Poder Judiciário. 

Os dois caminhos são inseparáveis e estão a exigir movimentos distintos e articulados, uma vez que precisam de ações em diferentes esferas. O da inconstitucionalidade do decreto presidencial passa por uma decisão jurídica do STF, mas guarda um componente político importante na medida em que é necessário afirmar que não se deve aceitar a extinção de órgãos colegiados, mesmo que criados por lei. O que se encontra em disputa é o modelo de democracia que devemos defender, sendo a participação popular parte fundante do Estado Democrático e de Direito.

O caminho da reforma do sistema político brasileiro www.reformapolitica.org.br precisa ganhar o engajamento político das organizações representativas da sociedade civil, movimentos sociais, populares, academia, pesquisadores e partidos políticos para que o Congresso Nacional paute a plataforma indicada como uma das prioridades legislativas ainda no ano de 2019. 

¹ Fernando Silva é integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), professor da Escola de Conselhos de Pernambuco (Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE) e ex-presidente do ConselhoNacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
*Artigo originalmente publicado no Blog do Wagner Gil.