Cida Fernandez¹

É fundamental que cada cidadão e cidadã participe da luta por políticas para o Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas que vêm sendo impulsionado desde 2006 com aprovação do Plano Nacional do Livro e da Leitura e, que em 2018, depois de muita luta ganhou mais força com a aprovação da Lei 13.696, de 2018, que instituiu a Política Nacional da Política e da Escrita (PNLE). Lei essa que espera regulamentação e que com os graves cortes de recursos que o atual governo federal impôs sobre as políticas sociais, vai precisar de muito envolvimento da sociedade para garantir sua regulamentação e implementação concreta. 

Mas, não basta! É preciso entender a fundo o que significa garantir a literatura como direito humano, para poder efetivar esse direito fundamental. Dizer “literatura como direito humano” diz respeito à qualidade do direito, a qualidade da política que se quer e precisa construir para garantir seu acesso universal. 

Garantir o direito a literatura como direito humano é garantir seu usufruto enquanto obra aberta. Enquanto um texto, que lido, é sentido, cheirado e vivido por cada pessoa a partir do seu repertório de vida, das suas experiências pessoais, das suas leituras de mundo e de textos, de textos e de contextos. 

 

Dar acesso à literatura enquanto obra aberta não responde a perguntas como “qual o personagem principal” ou “o que o autor quis dizer” – não que não exista uma personagem principal na estrutura literária ou um enredo intencionado, e que não sejam importantes, mas no acesso à literatura como direito humano na formação de leitoras e leitores, o ponto de partida é permitir à nossa humanidade que desfrute desse bem sem tampinha, sem roupinha, sem caixinha, só com as asinhas. Assim, a personagem principal de um determinado romance ou conto, pode ser aquela com a qual a leitora ou o leitor se identifica e não necessariamente com aquela que a estrutura literária enquadra como tal. E o que autor quis dizer, foi aquilo que tocou a alma do leitor, não importa se dentro da estrutura literária é isso ou não. Para entender, inclusive a estrutura literária, primeiro é necessário se fazer leitor, sem tampinha, caixinha, sem roupinha, só com pura asinha. Se a pessoa tem esse direito garantido, a sua formação como leitora ou leitor critico e autônomo construirá as possibilidades para essas outras compreensões fundamentais em seu processo de desenvolvimento futuro como cidadã/cidadão livre, incluída/o e sobrevivente numa sociedade cada vez mais excludente. 

A literatura como obra aberta deve estar disponível às pessoas de todas as idades, sem censura, em sua diversidade de gêneros, tal como entendida por Antonio Candido: 

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (CANDIDO, 2004, p. 16) 

Mas para garantir o direito humano à literatura, não basta ter a diversidade de gêneros literários, é necessária também garantir a diversidade cultural. É preciso ter produções das diferentes culturas circulando: indígenas, ciganas, africanas, afro-brasileiras, afro-indígenas, europeias, asiáticas, norte- americanas, latino-americanas, brasileiras, populares e eruditas, em todas as suas expressões. 

Mas ainda não basta. 

Para garantir o direito humano à literatura, é preciso um acervo organizado, disponível e de acesso livre para todas e todos, de todas as idades, cores, religiões e sexualidades. É preciso que o arranjo desse acervo convide, seduza e possibilite que as pessoas se formem leitoras e leitores. É preciso criar uma organização que convide e dê direito às pessoas a pegar, cheirar, folhear, saborear gostar ou não. Ler inteiro ou pela metade. Achar chato, devolver e ir pra outro livro, exercer seu direito de leitor/a, como defende Daniel Pennac. Deitar no chão, sentar na cadeira ou no sofá e permitir-se transportar para outros mundos. Desligar-se da realidade e perceber que essa realidade não é imutável. E, que o poder da mudança está em cada um e cada uma. 

E, finalmente, para garantir o direito humano à literatura é fundamental a mediação humana. A mediadora ou mediador de leitura, que naturalmente deve ser leitor/a, apresenta a literatura para pessoas que ainda não foram seduzidas pela leitura e também para quem já é leitor ou leitora. Rodas de leitura, contação de histórias, leituras compartilhadas, clubes de leituras, propiciam momentos de prazer e deleite. O usufruto de um texto literário como obra aberta fortalece os vínculos afetivos e a confiança entre as pessoas, além de efetivar a literatura como um direito de todos e todas. 

A partir desta perspectiva, as Bibliotecas Comunitárias têm defendido a literatura como Direito Humano e têm perseguido garantir o direito humano à literatura. Este texto foi escrito como uma homenagem, especialmente para as pessoas que fazem esse sonho caminhar para a realidade, coletivamente, como diz outro compositor: 

Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade (Raul Seixas) 

E assim, o coletivo de Bibliotecas Comunitárias caminha junto, construindo esse sonho, lutando por políticas públicas, construindo bibliotecas nas periferias, inventando novas práticas sociais de leitura, estimulando a criação de novos textos e reinventando seus contextos. Sonhos que não tem fim, pois a qualidade da garantia do direito humano à literatura é como a utopia ou o horizonte, é como a formação leitora, nunca tem fim, sempre pode ser melhor. Nossa biblioteca, nossa produção literária, nosso acesso, nossas práticas, nossas políticas públicas sempre podem ser melhores e alimentadas por novos sonhos, que sonharemos juntas e juntos e que se tornarão realidade, realidade que sonhará outro sonho, que sonharemos juntas e juntos e que… 

Até o infinito. 

 

Referências: 

BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). MEC/MINC, 2006. 

BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Projeto de lei n. 13.696, de 13 de julho de 2018. MEC/MINC, 2018. 

CANDIDO, Antonio. O Direito à Literatura e outros ensaios. Coimbra, PT. Angelus Novus, 2004. 

HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. 

PENNAC, Daniel. Como um romance. São Paulo. Rocco/L&PM Pocket. 2008. 

 

¹ Cida Fernandez é Bel. em Biblioteconomia pela UFPE, Responsável pelo Programa Direto à Leitura do Centro de Cultura Luiz Freire-CCLF