Fernando Silva¹

A semana foi marcada por uma vitória fundamental para mais de 51 milhões de crianças e adolescentes, universo populacional que compõe o público prioritário da educação básica: a promulgação, pelo Congresso Nacional, da emenda constitucional N.º 108/2020, que constitucionaliza o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação (Fundeb). Representa uma conquista essencial no caminhar da superação das desigualdades no sistema de ensino, quando determina o aumento progressivo do percentual da União, alcançando 23%, em 2026, ao invés dos atuais 10%. O Fundeb, agora permanente, incorpora o Custo Aluno Qualidade (CAQ) e deve ser compreendido e efetivado como uma das possibilidades que “garante que todas as escolas do país tenham infraestrutura adequada, com banheiros, quadras poliesportivas cobertas, laboratórios de ciências, bibliotecas, entre as condições imprescindíveis de qualidade.”[2]

Porém, a semana também foi marcada pela defesa do trabalho infantil, proibido pela Constituição Federal (CF, 1988). É o Art. 7º da CF que regula “os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” e a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos’.

É preciso lembrar que a luta pelo fim do trabalho de meninos e meninas com idade inferior a 14 anos, assim como a luta pelo novo Fundeb, são para ser entendidas e defendidas como parte  essencial do Estado Democrático de Direito. É, portanto, uma obrigação de executivos (Presidente da República, Governadores, Prefeitos), Poder Legislativo, Ministério Público, Poder Judiciário, Defensoria Pública, setor empresarial, organizações da sociedade civil, igrejas, sindicatos e o sistema de conselhos priorizarem a formulação e destinação privilegiada de políticas sociais e econômicas para que sejam eliminadas todas as formas de trabalho infantil.

Sobre esse, a PNAD/IBGE (2016) indica que persistem 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 05 a 17 anos trabalhando, sendo a maioria dos 14 aos 17 anos (1.940 milhões) e 104 mil dos 05 aos 09 anos. No geral, são na maioria meninos (64,9%), porém quando o trabalho infantil é doméstico, é predominantemente feminino (94,2%), conforme estudo [3]. Avançando na compreensão humanitária dos números é estarrecedor que a maior concentração seja da raça/cor negra (1,4 milhões). As atividades agrícolas afetam mais quem tem entre 05 e 13 anos e as adolescências (16 – 17 anos) estão mais presentes nas atividades urbanas.

Importa destacar que o Decreto N.º 6.481/2008 define as piores formas de trabalho infantil, entre as quais (I)  todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como venda ou tráfico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou obrigatório; (II) a utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para fins de exploração sexual comercial, produção de pornografia ou atuações pornográficas; (III) a utilização, recrutamento e oferta de adolescente para outras atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; e (iv) o recrutamento forçado ou compulsório de adolescente para ser utilizado em conflitos armados.

Portanto, defender o trabalho infantil  (“Bons tempos, né? Onde o menor podia trabalhar. Hoje ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum”, Presidente da República, Jair Bolsonaro)[4] constitui-se em distintos problemas. É uma afronta a CF, notadamente, ao art. 7º, mencionado, e ao art. 78, uma vez que o Presidente jurou “manter, defender e cumprir” as determinações constitucionais. Segundo, o acesso precoce ao trabalho tem perpetuado a pobreza e exclusões que marcam gerações de pessoas. É primordial a garantia ao pleno desenvolvimento das infâncias e adolescências, que só é possível mediante o acesso à alimentação, saúde, lazer, cultura, esporte, educação, convivência familiar e comunitária e a qualificação profissional e ao trabalho, conforme determinado na CF e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma terceira problemática é desconsiderar que entre as piores formas de trabalho, a exploração sexual, comercial, marcam a vida, sobretudo, de meninas. E demonstra como a cultura do menorismo permanece presente nas mentalidades, inclusive, do mandatário da República.

Mas, a luta continua, e tem nos embates da reforma tributária e nas restrições orçamentárias entraves que estão sinalizando a supremacia da política econômica e fiscal sobre os direitos fundamentais de brasileiros e brasileiras.

Em relação a reforma tributária, a afirmação de Paulo Guedes de que livro é um produto da elite afronta o direito à leitura, indispensável a qualquer ser humano, independente de recorte geracional, orientação sexual, cor/raça/etnia, opção religiosa, deficiência (física, mental, intelectual ou sensorial), classe social e local de nascimento e/ou residência. Mas, a elevação para 12%, na possível nova Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), certamente afetará, exatamente, quem tem menos poder aquisitivo. É necessário e urgente entrar na disputa da pauta da reforma tributária, não se admitindo taxação que perpetue as desigualdades.

Outra frente de atuação é a imprescindibilidade da revogação da emenda constitucional N.º 95/2016, instituidora do novo regime fiscal. Diversas organizações demonstram que o regime fiscal afeta as pessoas detentoras de direitos (mulheres, crianças, adolescentes, jovens, indígenas, negros, negras), prejudica o enfrentamento à pobreza e às desigualdades e eleva a restrição e/ou a negação dos direitos (educação, saúde, assistência social, cultura, meio ambiente, ciência e tecnologia e o direito à cidade).  A conclusão é perversa. Ao fazer apenas a reposição da inflação no orçamento público, o investimento do “governo federal deverá cair de 19,8% do PIB em 2017 para 15,5% em 2026 e para 12,5% em 2036” .[5]  O Brasil andará para trás. É primordial reverter o quadro apontado.

A organização e a mobilização que constitucionalizaram o Fundeb Pra Valer, com CAQ e contribuíram para a diminuição do trabalho infantil em 59% (1992 – 2013), reduzindo de 7.773 milhões para 3.187 milhões[6] precisa de forças coletivas, que têm a responsabilidade política, ideológica e ética para nunca desistir em lutar e sonhar para a efetivação dos direitos fundamentais, com a indispensável perspectiva das necessárias equidades humanitárias. Salve o Fundeb Pra Valer, com CAQ, na luta pelo fim do trabalho infantil e etc. e tal

[2] https://campanha.org.br/acervo/nota-tecnica-por-que-e-imprescindivel-constitucionalizar-o-caq/

[3] Disponível em https://fnpeti.org.br/cenario/

[4]https://www.terra.com.br/noticias/bolsonaro-volta-a-defender-trabalho-infantil-bons-tempos,17a91aa01a7f6ff6fc785ea89a211e7ahsopeu17.html

[5] https://direitosvalemmais.org.br/wp-content/uploads/2020/05/DOCUMENTO_STF_Maio_2020.pdf

[6] https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2016/03/brasil-tem-3-milhoes-de-criancas-em-trabalho-infantil-mas-numero-vem-caindo-ano-a-ano/

*Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades. Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Olinda – PE. Recife, PE. Agosto de 2020. jfnando.silva@gmail.com

 

Publicado originalmente no blog: Falou e Disse.