Autor: Rogério Barata é coordenador do Projeto Educação Escolar de Meninas Quilombolas de Mirandiba, Champion do Fundo Malala, ativista da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala e educador do Centro de Cultura Luiz Freire

A luta pela efetivação do direito à educação escolar quilombola é antiga, tendo sido realçada no debate sobre a dívida do Estado brasileiro para com os afro-brasileiros desde a período escravista. E esta dívida não se restringe à questão fundiária – que é estruturante nesta luta –, mas envolve uma discussão mais amplia, trazida pelo movimento negro na luta antirracista.

A Educação Escolar Quilombola é uma demanda da própria Educação Quilombola, que é mais abrangente pois se realiza nos próprios territórios, dentro e para além dos muros das escolas, através do compartilhamento da memória coletiva, dos acervos e repertórios orais, dos marcos civilizatórios, das diversas manifestações que conformam o patrimônio cultural, das tecnologias e formas de produção do trabalho, da territorialidade, e das formas próprias de organização.

O direito à educação escolar quilombola reflete o reconhecimento dos quilombolas como sujeitos de direitos aos territórios (Art.68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e a garantia de suas práticas, saberes e fazeres (art. 215 e 216) pela Constituição Federal de 1988, e pela Lei 9394/96, LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, na qual foram acrescidos – por pressão do movimento negro brasileiro – os Art. 26-A, 79-A e 79-B na LDB, referentes à Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino das histórias e das culturas africanas e afro-brasileiras nos conteúdos curriculares. É, portanto, uma luta pela efetivação de um direito constitucionalmente garantido.

A Educação Escolar Quilombola deve ser ofertada pelos órgãos públicos responsáveis nos estabelecimentos de ensino localizados nos próprios territórios das comunidades reconhecidas como quilombolas, sejam elas rurais ou urbanas, bem como nos estabelecimentos fora dos territórios, mas que recebem parte significativa dos estudantes oriundos dos territórios quilombolas, garantindo o direito dos estudantes se apropriarem dos conhecimentos tradicionais de seu povo.

Foi nesta perspectiva que as comunidades quilombolas de Mirandiba se juntaram para elaborar as Diretrizes Curriculares Municipais da Educação Escolar Quilombola, cumprindo com o que determinam as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, instituída com a Resolução No. 8/2012 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, baseando-se na vasta documentação legal que ampara e articula os direitos quilombolas, e que orienta que todos os estados e municípios, nos quais estejam situados territórios quilombolas, instalem seus processos de elaboração e implementação de suas respectivas Diretrizes Curriculares.

Nesta caminhada de lutas, a elaboração das Diretrizes Curriculares Municipais da Educação Escolar Quilombola de Mirandiba faz parte do conjunto de ações da articulação quilombola de Mirandiba, com a assessoria do Centro de Cultura Luiz Freire e o apoio do Fundo Malala, para avançar na efetivação deste direito.

Sua elaboração resultou de mobilizações comunitárias nos territórios com escutas de relatos sobre suas dificuldades que enfrentam para acessar este direito, consulta à Comissão Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas de Mirandiba e à CONAQ, estudos e elaboração de propostas com a participação direta de lideranças, professoras e das juventudes quilombolas, em especial com Rodas de Diálogos com jovens meninas quilombolas. Estes debates inclusive somaram-se à luta mais ampla com a participação de jovens meninas quilombolas e educadora de Mirandiba em audiência pública no Senado Federal em Brasília em defesa do Novo FUNDEB com mais recursos para a educação, em especial para a educação escolar das populações Quilombolas, Indígenas e das periferias urbanas.

Sua institucionalização como política de estado, a partir da apreciação e encaminhamento do poder executivo e de sua aprovação por unanimidade na casa legislativa local, resulta também de muito diálogo com a própria Secretaria Municipal de Educação de Mirandiba e da Secretaria Estadual de Educação, especialmente com a Gerência Regional de Educação do Estado de PE – Sertão Central, e da parceria imprescindível com o GT Racismo, do Ministério Público de PE, e com a Defensoria Pública Regional de Direitos Humanos, da Defensoria Pública da União, que dentro de suas atribuições contribuíram fortemente, promovendo reuniões e audiências públicas para diagnosticar e dar encaminhamentos à situação de violações ao direito à educação escolar desta população.

Juntas com seus parceiros e em diálogo com o poder público, as comunidades quilombolas objetivam conceber, organizar e dinamizar sua educação escolar, de forma contextualizada, com escolas que conversem com seus saberes historicamente produzidos – que são partes constituintes de sua identidade –, e são elas, as comunidades e suas juventudes, as detentoras desses saberes, que também devem ser incorporados e dinamizados no fazer educativo de suas escolas.

Assim, uma vez instituídas no município pelo poder legislativo e sancionada pelo poder executivo, as Diretrizes Curriculares Municipais da Educação Escolar Quilombola expressam uma etapa importante do compromisso inadiável do poder público local: reconhecer Mirandiba como um dos municípios do estado de Pernambuco com maior número de comunidades quilombolas em seu território, respondendo a uma demanda histórica pela definição de políticas públicas de estado que avancem na efetivação deste direito.

Por fim, as presentes Diretrizes também assumem um lugar importante no conjunto de medidas de reparação da dívida histórica do Estado brasileiro com as comunidades tradicionais quilombolas, frente ao racismo estrutural que se construiu ao longo da história.