Domingo foi dia das mães e, à parte da hipercomercialização que aflige a data, foi dia de se estar em família, seja lá de que tipo for. De esquecer defeitos e enaltecer qualidades daquelas pessoas com quem você nem sempre escolheu conviver, mas que juntas dividem um amor incondicional que nos garante a boa dose de carinho que a gente precisa pra manter a cabeça mais ou menos nos trinques. Cozinhei para minha mãe e ela ficou contente que nesse dia estávamos juntos.
Sou apaixonado pela vida privada e pela minha privacidade da mesma forma que me encanta o debate público. Cada um na sua hora, cada um no seu lugar. No meu espaço privado, posso dividir uma cerveja com pessoas com quem jamais me encontraria no campo público. Na minha intimidade, entra quem eu permito. Tenho, em meus círculos privados, amigos que trabalham em corporações, na gestão pública, em partidos, em pequenas empresas, nos sistemas de saúde e educação. Gente que trabalha muito e que não trabalha. Podemos até conversar sobre coisas “sérias”, mas evitamos que nossas possíveis divergências na esfera pública interfiram na nossa alegria de conviver juntos. É gente que me dá prazer, que me dá alegria. Pessoas de quem gosto, por quem sinto carinho. Que me enriquecem a alma e que me fazem valer a pena encarar, na segunda-feira, a luta diária por um mundo que valha cada vez mais a pena para cada vez mais pessoas.
Enfim, fiquei contente de estar na casa de minha mãe domingo passado. E de, nesse dia, não estar em outro lugar.
Na vida pública, não podemos escolher interlocutores. Pelo contrário, a graça está justamente em se dialogar, da forma mais eficaz e transparente possível, com toda a comunidade que nos circunda, seja qual for a sua profissão. Você não escolhe quem vai ser seu chefe. Vendedor, não escolhe cliente. Para quem, como eu, escolheu luta por direitos como “instrumento de trabalho”, mais ainda. Para quem, como o prefeito da cidade do Recife, escolheu a política partidária e a atuação governamental , muito – mas muito – mais.
Um governante não pode escolher com quem dialoga. Nem pode ignorar parcela alguma da população para quem trabalha. A partir das metodologias e procedimentos que envolvem nossa democracia formal, precisa estar disposto a ouvir todo mundo que sentir a necessidade de intervir nas políticas públicas da localidade onde vive. Precisa prestigiar esse debate, valorizá-lo. Abrir os caminhos para que ele aconteça, no sentido de se fortalecer o caráter público de sua ação, não deixando que interesses e afetos que cabem na vida privada interfiram nesse processo.
Infelizmente não temos essa tradição no Brasil. Muito menos em Pernambuco e no Recife.
Aqui, os mecanismos de participação popular nas políticas públicas têm cada vez mais funcionado como “teatro” para a manutenção de acordos que são feitos, via de regra, em ambientes privados.
Nossa tradição patriarcal, a mesma que “obriga” candidatos a cargos eletivos aparecerem na televisão com suas famílias logo no primeiro dia da campanha eleitoral, faz com que desde cedo a gente aprenda que, pra resolver algum problema com instituição pública, é sempre bom “conhecer alguém lá dentro”.
Desde 2012, integrantes do Movimento #OcupeEstelita buscam um debate com a prefeitura do Recife sobre o terreno de pouco mais de 100 mil metros quadrados onde se pretende construir o projeto Novo (sic) Recife. Sempre através do que se acreditavam ser espaços públicos de discussão: audiências públicas, manifestações em espaços públicos, momentos presenciais na prefeitura, na Câmara dos Vereadores e até nos meios de comunicação (via de regra privados, mas que deveriam também cumprir função pública).
Em muitas dessas ocasiões, o debate foi realizado e posteriormente ignorado. Como, por exemplo, nas audiências públicas (foram cinco). Nesses momentos, vimos posicionamentos de instituições como o Instituto Pelópidas da Silveira, OAB, Ministério Público Federal e Estadual, universidades e organizações da sociedade civil, além de dezenas de indivíduos ‘desorganizados’. Nenhum que pudesse ser identificado como favorável à intenção do Consórcio de construtoras. Muitos depoimentos apontaram irregularidades, ilegalidades no processo. Outros sugeriam diversas formas de ocupação da área.
Nada disso parece ter sido levado em conta quando a prefeitura, após receber quase 300 propostas por imeiu sobre o mesmo tema, ignora a maioria delas e sugere um “redesenho” do projeto, de cunho praticamente cosmético, que parece ter sido realizado completamente de costas para o que se viu e ouviu nas audiências. Ao invés de se propor um plano urbanístico bom para a cidade, em que empreendimentos privados pudessem ser realizados, fez-se um projeto para que um determinado empreendimento, já pensado, pudesse ser “legalizado”, fazendo com que a cidade se adaptasse a ele.
Em outras ocasiões, a participação foi simplesmente negada. Como, lá mesmo em dezembro 2012, a então gestão João da Costa fechou as portas para representantes da população em reuniões do Conselho de Desenvolvimento Urbano realizadas às vésperas do Réveillon que deram sua aprovação para o projeto, ajudando Geraldo Julio, que assumiu a prefeitura três dias depois, a dizer que “isso não era mais com ele, mas com a justiça”.
Muitas (muitas mesmo) vezes participei de manifestações que desejavam diálogo com representantes do poder público. Muitas (muitas mesmo) vezes me vi na obrigação de dialogar apenas com guardas e policiais que tinham como única ordem impedir minha entrada em órgãos públicos.
Podemos também citar a vez em que a então relatora da ONU para a moradia adequada Raquel Rolnik, em 2014, foi impedida de falar na Câmara dos Vereadores sobre os impactos da Copa do Mundo – e iria incluir em seu discurso a situação do Cais. A mesma casa legislativa que, diversas vezes nos últimos anos, fechou suas portas à participação popular quando se queria discutir temas como o transporte público, a situação de vendedores ambulantes na cidade e, recentemente, o episódio que aprovou o plano urbanístico da Ilha Antônio Vaz, em que se inclui o Cais José Estelita, como assunto extra-pauta, ignorando parecer do Ministério Público e censurando a fala da oposição.
Realmente acho um absurdo que o prefeito Geraldo Julio tenha trazido a discussão a respeito do Cais para a porta da sua casa. Lamento bastante que, impedindo as pessoas de participarem democraticamente das decisões que afetarão a cidade (e as famílias de todo mundo), tenha feito com que manifestantes precisassem abrir mão de seu tempo livre, de lazer, convivência familiar e vida privada, para acampar na via pública. Que tenha feito com que seus próprios vizinhos precisassem ser incomodados por conta da forma com que ele e seu grupo político fecharam as vias de diálogo aberto em espaços públicos.
Note como a gente confunde as coisas. O autor do requerimento de interdição da rua Neto Campelo, onde vive Geraldo Julio, não foram seus vizinhos. Mas a própria prefeitura. Foi o poder executivo municipal que solicitou, alegando que o protesto era um “evento irregular”. O juiz foi criativo na argumentação e decretou que “a rua, a calçada, os passeios públicos e o entorno” fosse desocupado. Pelo argumento do magistrado, não se poderiam mais realizar protestos de rua no Recife.
Espero que isso comece a mudar. Que decisões de conferências e audiências públicas possam significar mais do que almoços em restaurantes de grife. Que uma manifestação de caráter social realizada num espaço de participação popular tenha mais valor do que um telefonema de uma muito particular empresa financiadora de campanha.
Porque para a nossa vida particular e nossa privacidade poderem ser protegidas, é fundamental o fortalecimento do nosso diálogo público, enquanto sociedade.
Nós estamos aqui pra isso.