Fernando Silva¹

 

Ser diabético em tempo de pandemia é escutar, assistir e ler, diariamente que você é parte do grupo de risco e, como tem comorbidade, os cuidados precisam ser elevados a primeira prioridade, pois, em havendo a contaminação pela Covid–19, agrava-se a situação. A chance de morrer é maior. Nada animador. Então, como reagir e lidar com a situação? A seguir, conto um pouco das minhas reações e posicionamentos pela vida. Melhor dizendo, pela minha vida. E também das outras pessoas.

Para começo de conversa, lembro que a última vez que saí para trabalhar, dia 16 de março de 2020, era para participar de duas reuniões no Conselho Municipal de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Cidade do Recife (COMDICA). Elas não aconteceram. Passava a vigorar a necessidade de isolamento e distanciamento social, o máximo de cuidado para que o vírus não atingisse inúmeras pessoas, em especial as do grupo de risco (diabéticos, cardíacos, pessoas idosas etc.). Eu, um diabético há quase três décadas e já chegando lá, um idoso. É uma maravilha ficar idoso. Aliás, costumo dizer que a melhor opção é ficar velho. A outra é muito ruim e não deve ser almejada. Faço muito para adiar ao máximo a chegada da morte. Definitivamente, morrer não faz parte dos meus planos nas próximas três décadas. Um detalhe, já ia esquecendo, a assessoria ao COMDICA foi suspensa.

Em março também seria o início das aulas no mestrado. Mas, eu e milhões de estudantes, em todos os níveis de ensino, tiveram as aulas adiadas ou suspensas. Outros, passaram a ter aulas remotas. João Fernando, meu filho, teve o semestre de aulas no curso Cinema e Audiovisuais totalmente na modalidade remota. Passei a respeitar a principal recomendação: ficar em casa. Sair, só para o essencial. Álcool em gel, lavar as mãos e higienizar as compras. Mudanças de hábito e rotina.

Nas três ou quatro primeiras semanas adotei a postura de que todo dia era segunda, quinta ou domingo. Entrou em cena o famoso ‘tanto faz’. Errado. Percebi não respeitar o calendário semanal e não ter rotina com os horários para o TAD (Trabalho a Distância). Sim, me nego a usar a expressão “home office”. Se existe EAD (Educação a Distância) deve prevalecer o TAD. Viva o Mestre Ariano Suassuna, um defensor da língua portuguesa e contrário aos estrangeirismos.

Já que mencionei a EAD, o meu orientador do mestrado, Professor Humberto Miranda, resolveu fazer reuniões virtuais para que fosse possível ir avançando nos estudos. Excelente iniciativa. Minha tarefa: fazer o Estado da Arte. O que danado é isso? A explicação é simples, porém a tarefa é trabalhosa, contudo, prazerosa. Pesquisar em plataformas virtuais os artigos científicos, dissertações e teses relacionadas ao meu projeto de pesquisa. Quase pronta. Também fui convidado a compor seu grupo de pesquisa na UFRPE. Convite aceito, é óbvio. Já tivemos três reuniões de orientações e uma do grupo de pesquisa. A produtividade acadêmica tem oscilando, ora com boa produção e ora de baixa. Mas, sem deixar a peteca cair. E estou dividindo o tempo TAB, EAD e escrevendo artigos. Meu propósito é um a cada 15 dias.

Fiquei animado com as orientações no mestrado, TAD e grupo de pesquisa e estava quase me esquecendo que sou um diabético. Me lembrei, em plena fase de isolamento e distanciamento social, da receita para controlar o peso e manter as taxas sem alterações. O tripé é ancorado na alimentação balanceada, no uso da medicação e na prática de exercícios.

O danado é trabalhar e estudar em casa sem querer ficar assaltando a geladeira, mesmo com produtos dietéticos e frutas. Detalhe: produtos dietéticos em excesso não são recomendados. Determinadas frutas, nem pensar. Outras, consumir, com moderação. É, ser diabético é chato, trabalhoso, mas, com disciplina e paciência (difícil) é possível. Me lembro que não tenho pressa para morrer. A compra da medicação fica simples e, normalmente faço quando saio para caminhar.

Sim, as caminhadas não pararam. Houve alteração na dinâmica. Inicialmente, sem máscara, fazia em horários nos quais não encontrava muitas pessoas na Lagoa do Araçá, perto do apartamento em que moro. Depois, incorporei a máscara. Teve o momento ‘do tranca a rua’ (nada de lockdown). Viva, o Ariano Suassuna. Passei a caminhar na área externa do edifício que resido.

Ficar em casa 24 horas por dia, durante semanas e meses não é nada fácil. Passei a telefonar para várias pessoas amigas e dizia que só ligava para quem eu não gostava, que podiam desligar o telefone. Parei com os telefonemas. A lista ainda não acabou.

Percebi que muitas pessoas resistiam e ainda resistem em usar máscara. Então, criei outro tripé. Aliás, acho que sou uma pessoa extremamente limitada. Muito do que faço tem três partes. Provavelmente uma influência positiva das cores do Santa Cruz Futebol Clube. Então, para a Covid–19 não seria diferente. Passei a dizer para as pessoas, que entre usar máscara e um respirador, fico com a primeira opção. Que não estava e nem estou com presa para morrer. Quem quiser ir primeiro, não sou egoísta, pode ir na minha frente. E por fim, o mais importante, gosto muito de mim mesmo. Se eu morrer, vou ficar com bastante saudades de mim mesmo. Tem pessoas, não muitas, que certamente irão chorar. Mas, passa e eu não estarei mais aqui. Repito, vou sentir uma saudade danada de mim mesmo. 

E as ‘lives’? Opa! Os bate papos virtuais (quase que esqueço dos ensinamentos do Ariano Suassuna). É uma overdose. Se for acompanhar todos não vou ter tempo nem para dormir. Participei, até agora, de quatro bate papos virtuais. Num deles foi preciso terceirizar um Instagram. É, não tenho nem Instagram, nem Twitter e muito menos Facebook. Dizem que é bom para encontrar amigos, amigas e construir novas amizades. E outras coisitas. Vai lá outro tripé: (i) prefiro encontrar amigos, parentes e fazer novas amizades presencialmente e fisicamente; (ii) sou militante político das antigas, prefiro manifestações de rua, a exemplo da Campanha das Diretas Já (1983–1984) do que ficar fazer política virtual; (iii) também sou contra ter seguidores virtuais. Coisa messiânica. Deixa prá lá.

Para terminar o artigo, preciso afirmar três coisas importantes e necessárias – nenhuma mais do que a outra, – senão não forma o tripé. Me lembrei de uma amiga, Tiana Santo Sé. Ela dizia: “Você é uma  pessoa bem limitada. Tudo que você vai falar tem três partes.” Ela tinha razão.

Primeiro, já são mais de 120 dias sem usar calça comprida. Cuecas, muito esporadicamente. Ficar em casa tem suas vantagens. Nos bate papos virtuais, calça nem pensar. Bermuda e uma camisa, às vezes, de mangas longas. Elegância total.

Segundo, com a abertura de comércio, praia, restaurantes, bares, passei a ficar outra vez muito preocupado. Vejo que em algumas cidades tem fila para ir em determinados lugares. Estou fora. As únicas vontades que tenho é ser possível encontrar meus filhos (João Fernando e Bruno), mãe, irmãos e sobrinhos. Já são mais de 120 dias, sem beijos e abraços. E também encontrar amigos e amigas para comer torta (eu, tem que ser dietética) e tomar café, cerveja etc. e tal.

Terceiro, muitas pessoas sabem que não sou de brincar o Carnaval. Na verdade, levo muito a sério. Vou na quinta, sexta, sábado, domingo, segunda e terça, preferencialmente, para as ladeiras de Olinda. Gosto muito do Recife, sobretudo, quanto estou no Alto da Sé e vejo o Recife Antigo. E no sábado, que tem o melhor bloco de Carnaval do Mundo – pernambucano é muito humilde – a Feijoada da Mamãe. A concentração é no maravilhoso quintal do CCLF e sai pelas ladeiras de Olinda. Na concentração tem frutas, cuscuz com manteiga e os bebes. Na volta tem a melhor feijoada do universo, preparada por Ana Nery, amiga de mais de três décadas.

Que venha longo a vacina para toda a humanidade. Não quero abolir o uso de calças e da cueca para sempre. Quero também voltar a beijar e abraçar familiares e amigos. E continuar levando muito a sério o Carnaval de Olinda. É frevo!

 

¹ Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Olinda – PE. E diabético. Recife, PE. Julho de 2020.

 

* O texto foi originalmente publicado no site Falou&Disse.