O Centro de Cultura Luiz Freire entrevistou a educadora  e assessora de advocacy Liz Ramos, do Projeto Educação Escolar das Meninas Quilombolas de Mirandiba, para entender melhor a estrutura da ação. Confira a entrevista abaixo:

CCLF –  Qual o principal objetivo do projeto em criar esse encontro entre as meninas? 

 

meninas de diferentes comunidades quilombolas se reúnem em rodas de conversas, promovidas pelo projeto, para discutir sua situação escolar

Liz Ramos – O projeto Educação Escolar de Meninas Quilombolas de Mirandiba tem duas principais frente de atuação que têm foco na educação de qualidade, desenvolvendo a identidade quilombola e considerando as diretrizes da educação escolar quilombola. Uma ação chamamos de Mobilização Comunitária e a outra – que uma macroação – é advocacy. O advocacy é a defesa do direito à educação escolar, em que se tem como ponto de atuação a construção das diretrizes curriculares municipais de educação escolar quilombola. A  construção das diretrizes é um trabalho de envolvimento da comunidade no debate sobre o direito a uma educação específica para os quilombolas. Já a mobilização comunitária é parte da estratégia de envolvimento da comunidade,  entendendo que esse direito está relacionado aos direito humanos da comunidade como um todo. 

As comunidades quilombolas em Pernambuco têm diversos problemas. Talvez o mais evidente seja a própria visibilidade sobre os direitos específicos que elas têm como ao território, à demarcação das terras. A maioria das comunidades já estão em um processo de reconhecimento, que começa com uma auto identificação. Primeiro, eles têm que se identificar como quilombola e, a partir disso,  é feito todo um processo que envolve a Função Cultural Palmares e o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. Algumas dessas comunidades têm escola. Entretanto, elas estão sendo fechadas ou nucleadas. O que percebemos em Mirandiba é que elas estão fechadas, então os alunos têm que ir para a cidade. Isso faz com que tenham uma dependência do transporte escolar. Desde o começo,  nós vemos isso como  um problema muito grande. Do ponto de vista das meninas,  a questão da falta de transporte as deixa mais vulneráveis em uma série de aspectos. Por exemplo, o transporte passa em uma certa estrada, mas elas moram longe, ou seja, as meninas têm que caminhar muito. As crianças da comunidades  como um todo saem muito cedo, bem antes da aula. , Às vezes,até antes das 6h da manhã. Mas a aula começa entre 7h ou 7h30, ou seja, só vão lanchar lá para as 10h. Há uma situação de vulnerabilidade e até fome mesmo, como toda criança que toma café antes de 6h e vai comer alguma coisa só depois das 9h30. Temos escutado relatos muito tristes da situação de transporte. Por exemplo, há comunidades que estão distante a 20km da escola, o transporte deixa na escola, mas lá quebra, com isso elas têm de voltar a pé. Além de ser um percurso muito longo, não é uma estrada fácil, é no meio do mato, por cima da pedra, no solo íngreme. Percebemos que há uma falta de compromisso ao próprio transporte. O município paga essa semana, ele passa essa semana andando normal, mas acaba a gasolina, o município não coloca mais, as crianças acabam faltando aula. São muitas situações que envolvem a questão do transporte, que seriam diminuídas se houvesse escolas na comunidades. 

O tema da educação é o tema central do nosso projeto, por isso, na mobilização comunitária, iniciamos desenvolvendo um diagnóstico participativo, indo em todas as casas, sabendo o número de pessoas e de crianças, entendendo se estão ou não estudando. Desta forma, fizemos um levantamento para conhecer cada comunidade e todo esse trabalho  de mobilização comunitária está sendo feito junto a uma equipe local – as próprias lideranças – que estão visitando as outras comunidade para se conhecerem. Isso está sendo muito legal! Eles estão elogiando muito isso de poderem se conhecer. A primeira atividade foi esse censo, para depois identificar as meninas que são boas contadoras de histórias. Com isso, surgiu a ideia de ter rodas de diálogo juntando duas ou três comunidades mais próximas, falar o que elas fazem para estudar. Desde então,  o nosso tema é “a escola que temos e a escola que queremos”.

“ Há um aspecto interessante em Mirandiba: além do número de comunidades, a cidade tem cerca de 80% da população negra. Esse percentual é maior que o de população negra do estado. A população é basicamente de descendentes de quilombolas, mesmo que ela não se identifique dessa forma e tenha perdido os vínculos com a comunidade. Por isso,  é importante que a educação considere a história dos quilombos, que entenda a identidade com elemento constituinte daquele povo”
CCLF – Você poderia falar um pouco sobre o que são essas diretrizes para a educação que estão sendo construídas?

 

Meninas da comunidades participam ativamente das discussões

LIZ RAMOS – Existem no País diretrizes nacionais para a educação escolar quilombola. É como deve ser a educação nas escolas das comunidades quilombolas. Uma coisa interessante é que eles consideram educação escolar quilombola nas escolas nas comunidades, mas também consideram que um município que tem em torno de si diversas comunidade quilombolas, mesmo que os estudantes frequentem  uma escola no centro urbano, ela também é considerada uma escola quilombola. Há um aspecto interessante em Mirandiba: além do número de comunidades, a cidade tem cerca de 80% da população negra. Esse percentual é maior que o de população negra do estado. A população é basicamente de descendentes de quilombolas, mesmo que ela não se identifique dessa forma e tenha perdido os vínculos com a comunidade. Por isso,  é importante que a educação considere a história dos quilombos, que entenda a identidade com elemento constituinte daquele povo. Portanto,  ela tem que considerar: suas lideranças, seus  heróis, seus mitos, suas histórias, sua geografia, suas datas, suas festas. As diretrizes nacionais colocam que a escola deve preferencialmente ser na comunidade – para não perder o vínculo e fortalecer a relação com aquele território. Porque não é somente a terra, é o território que tem a história dos antepassados, que tem os hábitos: o cemitério, a igreja, o terreiro. Eles e elas têm direito a ter um professor quilombola, uma pessoa que tenha essa relação com a comunidade, de pertencimento e relação com  as lideranças da comunidade. Além disso, o plano de projeto pedagógico tem que construir a sua programação considerando os costumes. Estamos vendo a história de Mirandiba contada a partir dos fazendeiros, dos médicos, dos dentistas, do professor que chegou ali. Ninguém fala de que quando a cidade começou, talvez os quilombolas já estivessem lá. Há uma história que se conta de uma escravizada chamada Mirandiba, por exemplo. Nessas pesquisas da história da comunidade, as pessoas têm se interessado sobre as histórias dos quilombos e de que forma essa história pode vir a ser contada.

 

CCLF – Já que você está me contado um pouco sobre esse processo de participação comunitária, você poderia me falar um pouco sobre as metodologias usadas no projeto e  como elas são importantes em uma ação de base comunitária? 

Reunião entre educadores do protejo e o GT Racismo do MPPE

LIZ RAMOS – Fazemos o projeto em parceria com a Articulação das Comunidades Quilombolas de Mirandiba.  Nós começamos a discutir-lo com a Comissão Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas de Pernambuco, responsável por  articular várias comunidades, e foi quem indicou o município de Mirandiba.Entendemos que é importante fazer junto com a comunidade e or isso tudo é dialogado com as lideranças, os passos que estamos dando. Se vamos fazer um diagnóstico, a primeira pessoa envolvida é a liderança,  por exemplo. Dessa forma queremos envolver os professores, as famílias e as meninas. Outra coisa importante é que estamos preparando para começar um trabalho de escuta dos mais velhos da comunidade. Já estamos fazendo isso,  em destaque no trabalho de comunicação. Então, esse objeto está embasado em questões relacionadas ao direito à educação e à comunicação. Não só a comunicação como instrumento na defesa do direito à educação, mas como peça fundamental para o fortalecimento da identidade. Falar para o outro é um estratégia essencial para que elas saiam  da invisibilidade. Essa história negra de Mirandiba é uma estória a ser contada se contada, porque ela não foi – e ela é invisível. Então, são dois braços do Centro de Cultura Luiz Freire que estão articulados, no  caso, a comunicação e o direito à educação, envolvendo a comunidade em todas as discussões, mas também no advocacy. Articulando a secretária de educação – porque as diretrizes são um instrumento da política educacional do município envolvendo vereadores, outros conselhos, outras secretarias, Ministério Público.

“A comunicação é peça fundamental para o fortalecimento da identidade. Falar para o outro é um estratégia essencial para que elas saiam  da invisibilidade. Essa história negra de Mirandiba é uma estória a ser contada , porque ela não foi – e ela é invisível”

O projeto tem integrado a comunidade através de visitas as famílias e líderes quilombolas

CCLF – Desde o início da trabalho até agora, qual principal diferença que você tem observado na comunidade?  

LIZ RAMOS – Quando estamos chegando, todo mundo já está sabendo. Ora estamos fazendo um trabalho de planejamento no Centro Cultural Zumbi, que fica no centro do município, mas essa ação vai para a comunidade. Então, as pessoas veem a ação acontecendo. Estamos indo, com a comunicação, entrevistar as pessoas, conhecê-las, conhecer o lugar, gravar as escolas, as casa. Isso está sendo muito interessante, porque a comunidade está super mobilizada. Agora mesmo no encontro, nós envolvemos as meninas de 15 comunidades, apenas uma comunidade não conseguiu participar. As histórias dos transportes é um negócio enlouquecedor – o que eles fazem para poder se locomover. nas comunidades que são muito distantes e de difícil acesso. Há toda uma situação da infraestrutura -do que foi construído ou não foi construído – pelo município, justamente para isolar essas comunidades e invisibilizá-las. É muito evidente como esse isolamento é parte da estratégia de invisibilidade dos povos quilombolas e como isso tem a ver com a estratégia do estado. Tem duas comunidades que são próximas da cidade – deveriam ser de fácil acesso – mas o município colocou um lixão. Então a entrada das comunidades é um lixão, e um lixão recém-construído, quando ali têm duas comunidades. Eles têm um monte de terrenos sem nada, mas ele vai colocar o lixão na entrada de duas comunidades, por onde passam transporte, os meninos andam, vão para escola, vai para feira. São situações que a gente vê parece por acaso, mas esse acaso é também um retrato do racismo institucional que vemos que há no município.

 

CCLF – Na sua opinião essa falta de estrutura de transporte é o principal problema da implementação do projeto? 

Jovens da Comunidade Quilombola Pau de Leite, localizada na zona rural de Mirandiba

LIZ RAMOS – Ele é um problema grave, porque o único transporte que a maioria das pessoas têm é o escolar. A imensa maioria deles não têm carros, às vezes têm uma moto. Então, eles já são muito isolados e a situação das estradas já facilita isso. Mas acho que isso é parte de um situação que tem a ver com o racismo que a cidade têm. Para se ter uma ideia, eles dizem que até pouco tempo a cidade tinha dois clubes: o clube para os brancos e o clube para os negros. Os negros não poderiam frequentar o clube dos brancos, mas os brancos poderiam frequentar o clube dos negros. Há uma população enorme quilombola que mora nessa comunidades, que é muito pobre e precisa das políticas assistenciais, e que há anos o município não coloca os recurso para renovar o CadÚnico – cadastro essencial para cadastrar as famílias em políticas sociais como: Bolsa Família, BPC, benefícios para idosos, deficientes. Você questiona o motivo,  a resposta é a falta de carro. Mas não é que o município não tenha carro, mas sim que ele não prioriza o carro para atender as comunidades quilombolas. Quando você sabe que em 5 anos, se você tem uma família pobre, provavelmente se essa família tinha 3 filhos adolescentes, esses filhos já têm chance de ter casado e ter outros filhos. Então, a família cresceu, a população cresceu. Essa população precisa de escola, saúde, alimentação. Se é uma população muito pobre ela vai precisar do Bolsa Família, da aposentadoria dos mais velhos. O isolamento é parte de uma estratégia, de uma falta de atenção do município para com as comunidades quilombolas e traz como consequência a falta de interesse em incluir esses jovens nas políticas públicas do município. Por exemplo, a escola não se preocupa em cadastrar as escolas quilombolas como escolas quilombolas. Se as escolas assim fossem cadastradas, o município receberia um recurso a mais por aluno. Entretanto,na hora que não se cadastrou aquela escola com quilombola, ela deixa de receber a mais para merenda, para o transporte e pelo valor do Fundeb que diz respeito a aluno. Então,  tem uma mistura, mas acredito que grande parte tenha a ver com a dificuldade de o município reconhecer a presença dos quilombolas na comunidade. Isso é uma forma de racismo.

 

Fotos: Acervo CCLF