“A fome é um fenômeno complexo, com múltiplas causas, e é fato que a atuação dos governantes pode agravá-la. E é isso que faz a gestão de Jair“, escreve Nathalie Beghin, economista com doutorado em políticas sociais pela Unb, coordenadora da assessoria política do Inesc e integrante da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia, ABED-DF, em artigo publicado por Jornal GGN, 06-06-2022.
Se há fome, não há democracia. Em um país no qual o povo exerce a soberania ou, ainda, em um regime político em que todas as pessoas participam igualmente, a insegurança alimentar e nutricional não aconteceria. No Brasil do presidente Bolsonaro 36% da população não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses, de acordo com dados recém-publicados pela FGV Social [1]. E mais: a situação piorou em relação à 2014, quando esse percentual era de 17%. Foi também em 2014 que a Organização das Nações Unidas informou que o Brasil tinha saído do Mapa da Fome mundial.
Se é bem verdade que a fome é um fenômeno complexo, com múltiplas causas, é também fato que a atuação dos governantes pode agravá-la. E é isso que faz a gestão de Jair. Vejamos de que forma.
O governo federal desmontou o arcabouço institucional de segurança alimentar e nutricional que havia sido progressivamente estruturado no país desde os anos de 1990, com maior ênfase a partir de 2003. Em poucas canetadas, acabou com o fortalecimento da agricultura familiar, fundamental para a produção de alimentos básicos, aqueles que comemos todos os dias, o que contribuiu para elevar a inflação de alimentos e para a carestia. Deixou à mingua o Programa Um Milhão de Cisternas, central para garantir o acesso à água tanto para o consumo humano quanto para a produção de alimentos no semiárido.
Programas de alimentação e de abastecimento, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foram enfraquecidos de tal modo que pouco mitigaram o problema da fome. Os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e seu sucessor o Auxílio Brasil, além de deixar sem atendimento milhões de famílias elegíveis, perderam suas necessárias conexões com os sistemas de assistência social, saúde e educação.
O fechamento dos conselhos de políticas públicas, como foram os casos do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf) e da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo) impossibilitaram que as vozes das pessoas mais afetadas pela fome pudessem se manifestar e apresentar suas demandas.
A esse dramático quadro se soma a adoção de políticas fiscal e monetária contracionistas. Cortes expressivos no orçamento da União associados a sucessivas elevações da taxa Selic resultaram no aumento do desemprego e do endividamento e na queda da renda dos trabalhadores e das trabalhadoras. Como se não bastasse, foram realizadas reformas trabalhista e previdenciária que em nada contribuíram para a retomada econômica, ao contrário, alimentaram a precarização no mercado de trabalho.
Essa situação agrava as desigualdades raciais e de gênero, pois são a população negra e as mulheres as mais afetadas pela fome. Ainda de acordo com as informações da FGV Social, entre 2019 a 2021, a insegurança alimentar média passou de 30% para 36% no Brasil, uma elevação de 6 pontos percentuais; contudo, houve aumento de 14 pontos percentuais entre as mulheres (sobe de 33% para 47%) e queda de 1 ponto percentual para homens (cai de 27% para 26%). Como resultado, a diferença da insegurança alimentar entre gêneros em 2021 é 6 vezes maior no Brasil do que na média global.
A pesquisa divulgada pela Getúlio Vargas não apresenta dados raciais, mas uma boa aproximação desse recorte pode ser dada a partir da análise da pobreza que, no Brasil, é majoritariamente negra. O aumento da insegurança alimentar entre os 20% mais pobres foi durante a pandemia, de 22 pontos percentuais, saindo de 53% em 2019 e alcançando 75% em 2021, nível próximo do país com maior insegurança alimentar, o Zimbawe (80%). Já os 20% mais ricos, brancos, experimentaram queda de insegurança alimentar de três pontos percentuais – variando de 10% para 7%, pouco acima da Suécia (5%), país com os níveis mais baixos de insegurança alimentar.
Esses dados desoladores que refletem um agravamento rápido e recente da miséria, do racismo, do sexismo e do patriarcado são consequência de um governo que deseja a morte dos pobres, indígenas, negros e das mulheres, e que favorece a captura das instituições pelas elites que buscam, acima de tudo, manter seus privilégios. Paulo Guedes, ministro da Economia, e Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, são a melhor expressão dessa captura de democracia que, no Brasil, está adoecida porque serve à poucos e porque naturaliza um dos mais graves problemas da humanidade, a fome.
Os desafios de um novo governante que aposte na democracia serão imensos. Mas, felizmente, sabemos como debelar a fome. O fizemos no passado com sucesso. Temos os recursos, os instrumentos, os conhecimentos e saberes. Para fechar a equação é preciso vontade política.