Na véspera do dia do jornalista (7), o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) publica entrevista realizada com Andrea Trigueiro, professora, jornalista, educomunicadora e integrante da ABPEDUCOM – Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais da Educomunicação, na qual ela reflete sobre as aproximações que o campo comunicacional tem com a educação e como a educomunicação dialoga com os Movimentos Sociais e as periferias; e compartilha conosco parte da sua jornada até se reconhecer enquanto uma educomunicadora.
Confira a entrevista completa a seguir:
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF): Como uma jornalista se engajou com o mundo da educação e hoje é uma educomunicadora?
Andrea Trigueiro (AT): Os princípios que regem o jornalismo são princípios que dialogam diretamente com a educomunicação. Se você pegar, por exemplo, o Código de Ética dos Jornalistas vai ver o quanto se preza pelo compromisso com a veracidade dos fatos, com as minorias, com as pautas sociais, com o interesse público, com a condição de podermos ouvir a diversidade de vozes que temos na sociedade, e na educomunicação existem aspectos que dialogam de uma forma bastante intrínseca com estes princípios do jornalismo, então ao me debruçar sobre um jornalismo que deseduca, que viola, que não ouve as diversas fontes, que silencia, que estigmatiza e acaba reforçando preconceitos, eu fui em busca de possibilidades, alternativas a esta postura do jornalismo e foi a educomunicação que me deu as respostas que buscava.
Quando fui participar de um programa de rádio, que tinha Ana Veloso e Taís Ladeira, reencontrei um menino, Hainner Farias, que foi meu monitor num projeto no Centro das Mulheres do Cabo e ele me disse que estava fazendo um mestrado em educomunicação e que era a minha cara. E realmente, quando ele começou a me apresentar esse campo que eu não conhecia, eu vi que existia esse diálogo muito profundo.
Quando pensamos no que é a educomunicação, é uma educação que dialoga e uma comunicação que educa, então dentro do campo da educomunicação você vai ter seis áreas diferentes de intervenção, e uma deles é o letramento midiático – ou educação midiática -, mas você também vai ter o uso de tecnologias na educação, o desenvolvimento da fala, da expressão, como Paulo Freire dizia, como pronuncia da sua existência no mundo, ou seja, você está trabalhando com comunicação e outras similaridades entres estes dois campos.
(CCLF): Quando a educomunicação chega e se desenvolve no Brasil?
(AT): O campo da educomunicação surge na América Latina, quando Mário Kaplún começa a fazer experimentos com trabalhadores rurais usando um gravador, onde um grupo gravava uma conversa num lado da fita K7 e levava essa fita para um outro grupo, em outro território que ouvia essa gravação, esse debate do grupo e em resposta gravava o outro lado da fita e devolvia. E assim ele criava uma espécie de WhatsApp bastante dialógico. Ali começa a surgir os primeiros experimentos e mais adiante Paulo Freire, aqui no Brasil, também desenvolve experimentos parecidos, também bebe dessa fonte, juntando a educação com a comunicação, explicando para os professores que é necessário não estender o conhecimento, mas promover uma comunicação dialógica de modo que haja uma construção dos saberes. O professor Ismar de Oliveira Soares, na década de 1990, na Universidade de São Paulo (USP), sistematiza esses conhecimentos do Kaplún e do Paulo Freire e cria, dando nome a esse campo, que se chama educomunicação.
Então nem Mário Kaplún, nem Paulo Freire usam essa palavra, mas a educomunicação e suas bases começam a surgir das experiências deles. Paulo Freire, com aquela experiência em Angicos, conseguiu fazer com que pessoas adultas fossem letradas, alfabetizadas, a partir da sua própria rotina, sua experiência, das palavras que faziam parte do seu dia a dia. O professor Ismar cria o campo dentro da Escola de Comunicação e Artes da USP, onde está o curso de jornalismo, e a partir daí começa a juntar jornalistas e educadores e cria um projeto para fazer o perfil do educomunicador, afinal o que é um educomunicador? O que difere o educomunicador do jornalista/comunicador ou do professor/educador? E realmente o professor Ismar e o seu grupo tiveram uma grande sacada, não é à toa que nesse período eles conseguiram formar diversos educomunicadores dentro da rede pública de ensino de São Paulo, e nessa formação tinha bastante gente da comunicação, mais do que gente da educação. Inclusive hoje em dia em São Paulo tem concurso público para educomunicador na rede estadual e municipal de ensino, e são jornalistas que se candidatam, então é realmente um diálogo muito forte entre as duas áreas.
(CCLF): E depois que você entrou na educação não quis mais outro caminho? Como foi essa jornada?
(AT): Eu sempre fui jornalista e como jornalista fui oficineira, e assim cheguei numa universidade para dar aula. Quando cheguei lá, já dando aula, foi que eu percebi que precisava de formação na educação, pois eu entendi que muitos professores eram jornalistas renomados, mas sem experiência com a didática da sala de aula. Quando eu era oficineira não senti essa necessidade, mas quando cheguei no ensino superior percebi que tinha uma lacuna que não fazia sentido para mim, que era justamente a ausência de ferramentas, compreensões, leituras no campo da educação, aí eu fiz uma especialização em Docência no Ensino Superior e achei pouco, não deu conta das minhas demandas e então fiz um mestrado em educação. Foi nesse período que eu encontrei Hainner, e eu não queria o mestrado em comunicação – acabei fazendo o doutorado na área -, e quando fui buscar entender esse mestrado em educação foi que vi que o que almejava estava lá. Foi no mestrado, com o professor Sérgio Abranches, meu orientador, bastante freireano, que me abriu a percepção para esse lugar, como eu poderia aproveitar as ferramentas da comunicação, do jornalismo, para a sala de aula, planejamento, relacionamento, ensino-aprendizagem, construção de saberes, para contribuir para o empoderamento do estudante, do jovem, para o protagonismo, expressão, a incidência política. Foi ali que me tornei alguém como hoje me denomino, educadora, mas até lá não tinha essa noção de educação, de maneira nenhuma.
Na verdade eu fiz jornalismo, porque não queria ser professora. No meu tempo, em 1988, quando entrei na universidade, você fazia ou a Universidade Católica de Pernambuco, para ser jornalista de batente, ou Universidade Federal de Pernambuco, para ser professor. Eu fui querer ser professora quando os estagiários chegavam nas emissoras que eu trabalhava perguntando se a gente ganhava muitos ingressos para shows, eu quis ser professora quando eu vi esse tanto de futilidade na cabeça daqueles meninos e meninas, que eu e uma amiga, Ana Veloso, decidimos que iríamos fazer uma revolução, iríamos invadir as universidades para formar jornalistas com consciência crítica e cidadã.
(CCLF): Essa formação de uma consciência crítica e cidadã dialoga muito com os princípios da educomunicação, a exemplo da alteridade, da integração social, da relação colaborativa, e ao mesmo tempo eles também dialogam muito com os movimentos sociais. Como ocorre essa interseção?
(AT): Quando a gente tenta aplicar esses princípios no jornalismo dos grandes veículos, vemos que eles não conseguem, que não há harmonia, porque os grandes veículos buscam a audiência e o lucro. Eles encaram a comunicação e o jornalismo como um produto comercial, e na verdade o jornalismo é uma atividade comercial, mas quando a gente amplia esse olhar para o campo da comunicação, onde o jornalismo está inserido, e principalmente quando a gente pensa que a comunicação é um direito não acessado por todos, a gente amplia o olhar do jornalismo “puro e simples” para um campo maior, que é o campo da comunicação. Quando a gente abre e amplia, vamos ver que dentro dos grandes veículos não dá para fazer, esses princípios não podem ser aplicados pelo desejo do lucro, da produção fordiana, aquela coisa às vezes até mecânica, que tem que ter clique, respostas mercadológicas, capitalistas. E aí quando a gente vai para o campo da mídia alternativa, da mídia comunitária, a gente vai encontrar práticas mais horizontalizadas, mais dialógicas. Se você vai para as ONGs, por exemplo, os jornalistas que estão nas ONGs conseguem promover diálogos mais horizontais que os jornalistas que estão nos veículos, então principalmente quando a gente fala de mídia e educação, educação na mídia, a gente vai sempre olhar para os grandes meios entendendo que as dinâmicas não favorecem essa horizontalidade porque tem uma hierarquia muito definida, é o chefe, é o dono, é o patrocinador, mas quando a gente vai olhar para as periferias, onde estão o Sargento Perifa, o CCLF, o Gestos, o Cendhec, uma série de organizações não governamentais, você vai encontrar outras formas.
Eu gosto até de citar um exemplo, lembra quando Daniel Paixão lançou aquele brega protesto? Lembra da matéria que a Globo fez e que a Marco Zero Conteúdo fez? A Globo fez uma matéria “normal”: repórter, passagem, off, sonora das pessoas que faziam brega protesto, sobe som, etc. Na Marco Zero o microfone estava na mão das pessoas da comunidade e o microfone nas mãos das pessoas da comunidade diz muito sobre o protagonismo dentro da comunicação. Não é mais o repórter que reporta os fatos a partir da sua leitura, visão, ideologia e experiência. É cada um e cada uma podendo contar a sua própria história, porque quando a gente faz o uso desses princípios, quando a gente aplica eles, por exemplo, nas periferias, nas comunidades quilombolas, nas comunidades indígenas, nos adolescentes privados de liberdade, em vários espaços assim a gente vai encontrar um lugar propício a uma comunicação, mas o tempo de produção é diferente, os veículos não abraçam, só tem cinco horas para fazer duas matérias, e no espaço educacional, que as ONGs e as periferias promovem, isso é possível, é aplicável, dá para fazer colaborativo, dá para a Marco Zero dizer “Daniel pega o microfone e faz tua matéria”. A Globo não tem tempo para fazer isso porque o repórter só tem duas horas para voltar com a matéria pronta, então quando a gente fala desses princípios a gente vai entender sempre que a grande mídia, pelas suas dinâmicas, não consegue dar conta, quem consegue dar conta é a comunicação nos Movimentos Sociais, nas comunidades periféricas, e essas pessoas passam a contar suas próprias histórias, porque a vida inteira quem contou as histórias de alguns grupos não foram os próprios grupos. Quem contou as histórias das comunidades quilombolas? Foram pessoas brancas! Quem contou as histórias das pessoas indígenas? Foram os colonizadores! Quando aplicamos esses princípios as pessoas se pronunciam no mundo, as suas narrativas são publicadas, são veiculadas, são ouvidas por outras pessoas.
(CCLF): Você tem um artigo com um título muito curioso, se chama Educomunicação e Direitos Humanos: um diálogo amoroso. Onde entra o amor dentro da comunicação?
(AT): Isso foi inspirado no próprio Paulo Freire que diz que a educação tem que ser dialógica, mas não um diálogo de um gritando com o outro, precisa ser um diálogo amoroso. Quando a gente encontra a educomunicação e os Direitos Humanos num ambiente educacional, periférico ou dos Movimentos Sociais esse diálogo amoroso é possível.
Dentro dos Direitos Humanos você vai ter a cultura de paz, a comunicação não violenta e o diálogo que Paulo Freire propõe é amoroso, então quando a gente junta a educomunicação e os Direitos Humanos num diálogo amoroso, onde as pessoas têm uma escuta ativa, onde a gente consegue ouvir o outro na sua dor, na sua angústia, mesmo que a gente seja injustiçado, consegue promover esse diálogo que é ouvir e falar, não só falar, a gente avança para os caminhos que Paulo Freire promovia, incentivava, estimulava.
¹Andrea Trigueiro é jornalista desde 1993, doutora em Comunicação (PPGCOM/UFPE), Mestre em Educação Tecnológica (PPGEDUMATEC/UFPE), especialista em Direitos Humanos (UNICAP) e em Docência do Ensino Superior (Uninassau). Atualmente, é consultora da Dialógica Comunicação Estratégica, leciona e coordena o curso de Jornalismo da Unicap, coordena o Projeto de Extensão EducomDH – Educomunicação e Direitos Humanos na Mídia e o MBA em Jornalismo Independente. Também integra a diretoria do Centro das Mulheres do Cabo. Atua no Jornalismo há cerca de 30 anos e há 15 na Docência Superior. Foi coordenadora de Jornalismo da Rádio CBN Recife, produtora de reportagens do Programa Via Legal (TV Cultura/TV Justiça), repórter e produtora na Rede Globo Nordeste, repórter e produtora da Rádio Jornal do Commercio e da Rádio Clube. Foi professora da Uninassau, onde também atuou como coordenadora do curso de Jornalismo. Foi ainda professora de Comunicação para humanização da Saúde na Faculdade Pernambucana de Saúde e do curso de Jornalismo da Faculdade Boa Viagem.
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