A Democracia brasileira é algo muito recente do ponto de vista histórico. Com golpes de Estado e tentativas durante a sua trajetória, o fortalecimento democrático encontra ainda muitos obstáculos para se desenvolver. Quando direcionamos o olhar para as mulheres, sobretudo as mulheres negras, vemos que, se já era historicamente curta, a Democracia aqui é tão longa quanto um estalar de dedos.
Como lembramos em matéria do ano passado, quando a Conquista do Voto Feminino completou 90 anos, foi somente a partir de 1932, com um novo Código Eleitoral, que as mulheres conquistaram o direito ao voto, e assim mesmo com grandes restrições (autorização do marido e critério de renda, por exemplo). Em 1946 foi quando a obrigatoriedade do voto também se direcionou às mulheres e, hoje, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), das mais de 156 milhões de pessoas aptas a votar nas eleições de 2022, mais da metade, ou seja, 52,65% eram mulheres.
Se voltarmos para a época colonial brasileira, período histórico marcado por larga exploração e violência, com a invasão européia, a política de extermínio dos povos originários e o processo de escravização e comercialização de pessoas escravizadas, observamos que o início do século XVI está diretamente associado às grandes opressões da sociedade brasileira contemporânea, perpetuando a colonialidade no pensamento e a prática institucional que continua a invadir, exterminar e escravizar nos moldes do século XXI.
Por isso, quando falamos em Democracia representativa no contexto deste país tropical, tanto a História quanto dados como o do TSE, são de grande valia para compreendermos melhor o panorama do Estado Democrático de Direito e onde ele ainda não se efetivou – veja que nas eleições de 2022 as candidaturas de pessoas negras ultrapassaram as de pessoas brancas com 50,27%, o que representa um aumento de mais de 8% em comparação a eleição de quatro anos atrás, porém apenas cerca de 32% de negras, negros e negres foram eleites.
Adicionemos neste caldo de números significativos que nos contam sobre um cenário de extrema desigualdade, o seguinte dado: as mulheres negras são o maior grupo demográfico do país, com 28% da população, e ainda assim são não mais que 18% das candidaturas das eleições de 2022. Eleger mandatas feministas e antirracistas se coloca como uma necessidade. E é diante desta necessidade que o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) dialogou com Tamára Silva¹, articuladora da iniciativa Enegrecer a Política.
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF): As eleições de 2022 foi um período muito sensível e conturbado na política nacional com o embate entre o Estado Democrático de Direito e a continuidade de um governo fascista, o que gerou muita mobilização de todos os setores e grupos da sociedade. Como você avalia o papel das mulheres negras em prol da Democracia naquele contexto?
Tamára Silva (TS): Avalio como essencial! Desde a morte de Marielle [Franco] o número de mulheres negras disputando a política aumentou e isso é justamente um enfrentamento a esse fascismo, ao racismo, ao machismo na política. Ao nos colocarmos para a disputa, enfrentamos um projeto de governo que negava nossa existência e luta.
CCLF: Neste Dia da Conquista do Voto Feminino (24/02), logo após este intenso processo eleitoral, há o que comemorar no que se refere a candidaturas eleitas de mulheres negras?
TS: Acredito que sim apesar de termos eleito mais uma vez um congresso em sua maioria conservador.
Tivemos candidaturas negras vitoriosas com votações bastante expressivas, o que mostra que estamos na disputa da sociedade e a cada dia conquistando mais votos das pessoas que antes não conseguiam imaginar pessoas pobres, mulheres negras, nesses espaços de poder. Infelizmente foi um processo eleitoral mais uma vez violento para essas candidaturas, por outro lado, iniciativas como o Enegrecer a Política, que fizeram esse trabalho de apoio a candidaturas, articulação, formação, possibilitando mais cuidado para essas mulheres que passaram por esse período de disputa.
CCLF: O dinhero que os homens brancos recebem para o financiamento das campanhas é cinco vezes maior do que recebem as candidaturas de mulheres negras. Quais são os caminhos para uma equidade também no financiamento público de campanhas?
TS: O caminho ideal seria uma grande reforma no nosso sistema político que utilizasse critérios de paridade de gênero, raça, classe social, possibilitando o acesso dos grupos mais vulneráveis a esse financiamento, de maneira mais justa. Hoje, nós já temos em vigor algumas mudanças que obrigam os partidos a apoiarem candidaturas de mulheres negras e a distribuir melhor esse recurso, porém, por outro lado, vimos nesse processo várias pessoas que não eram negras se declarando dessa maneira para garantir mais recurso. Infelizmente temos um caminho longo a percorrer até termos um sistema político que seja de fato a nosso favor, ao invés de um sistema político que ainda privilegia homens brancos da elite.
Temos como estratégia mobilizar a população, para que possamos pressionar no sentido de uma reforma política do nosso sistema atual. Pressionar os partidos para que façam uma divisão mais justa dos recursos do financiamento, dando oportunidade para candidaturas que aumentem a representatividade de todo o povo brasileiro em nossa Câmara e Assembleias.
CCLF: Nesta eleição tiveram casos emblemáticos de candidatos que a vida toda se reconheceram como brancos, e assim são lidos socialmente, e como estratégia passaram a se autodeclarar como pessoas negras. Há receio que essas fraudes possam descredibilizar as cotas raciais nas eleições?
TS: Não acho que isso possa descredibilizar, pois nós, enquanto povo negro organizado, sabemos da importância das cotas para reparação histórica com o nosso povo. Acho que essas fraudes só mostram o quanto a branquitude não arreda fácil de seus privilégios e vem se utilizando de conquistas importantes para nós enquanto povo negro.
É necessário combater, questionar, publicizar essas questões, para que possamos fortalecer a defesa de estratégias como essas e fiscalizar todas as possíveis fraudes.
CCLF: Ainda sobre a resolução do Tribunal Superior Eleitoral para a política de cotas, como que ela influenciou nas candidaturas de mulheres negras na última eleição?
TS: Eu acredito que a política de cotas influenciou positivamente nas candidaturas das mulheres negras nas últimas eleiçõe, pois isso possibilitou a chegada de várias candidaturas em alguns partidos. A gente percebe que os partidos tinham o interesse de estar cumprindo essa cota justamente por conta do financiamente relacionado. Então acredito que isso abriu caminho para as candidaturas das mulheres negras que em outros períodos, antes das cotas, procuravam essa oportunidade junto aos seus partidos de saírem como candidaturas com financiamento possível para realizar uma campanha, e a partir das cotas, dessa obrigação e desse financiamento possibilitou que mais mulheres se candidatassem.
CCLF: Existe Democracia sem as mulheres negras nos espaços de decisão?
TS: Não existe Democracia sem as mulheres negras nos espaços de poder. Ainda mais em um país onde a população negra é a maioria, hoje a gente vê que as pessoas que se autodeclaram pardas e pretas são mais de 50% da população do nosso país, então para existir representatividade e democracia é muito importante a presença das mulheres negras. Para além disso, a gente sabe que as mulheres negras chefiam a maioria das famílias pobres no nosso país e essas mulheres tem o projeto político para toda a nação. São essas mulheres que estão chefiando as famílias bravamente em meio às desigualdades do nosso país, então só haverá democracia, de fato, com a participação e a representatividade de todo o povo brasileiro, das mulheres negras, das mulheres indígenas e de todo mundo que passou por esse processo histórico de apagamento e de desigualdade no nosso país.
¹Tamára Silva é mulher negra cearense, articuladora da iniciativa Enegrecer a Política, defensora dos Direitos Humanos e ativista da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA).