Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), indicam que entre 2017 e 2020, 180 mil crianças e adolescentes foram vítimas de estupro ou estupro de vulneráveis no Brasil. Os dados ainda não dão a total dimensão, uma vez que se estima que para cada denúncia feita, vinte deixam de ser registradas.
A fim de entender melhor a situação das crianças e adolescentes nesse contexto, o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) entrevistou Adriana Duarte, socióloga, arte educadora e arte terapeuta que integra o Coletivo Mulher Vida e a Rede de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes em Pernambuco.
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF): Segundo o Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, estudo lançado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em 2021, quase 180 mil casos de estupro ou estupro de vulnerável foram registrados, entre 2017 e 2020. Diante desse levantamento e tendo a compreensão que não é um problema de hoje, o que falta na prevenção deste tipo de violência?
Adriana Duarte (AD): A violência sexual vai abarcar o abuso sexual, que vai acontecer em casa, e a exploração sexual, que vai ser a violência sexual, o abuso sexual que vai se dar por meio de trocas com dinheiro, mas também com bens, com benefícios, com proteção, com situações muitas vezes enganosas, onde você é aludido sobre propostas falsas, ou seja, a exploração sexual ela vai ser essa configuração do abuso, mas numa estrutura de mercado ilícita e de terceira maior economia de mercado ilícita do mundo. Estamos falando de capitalismo, a gente está falando de uma sociedade que se estrutura na exploração. A exploração sexual é mais uma ação violenta, mais uma violência estrutural provocada pelo Estado em cima de grupos específicos, de categorias, de classes. Estamos falando de um Estado que é estruturalmente racista, homofóbico, machista, lesbofóbico, mas também é, em especial, aporofóbico. O problema é o medo das pessoas pobres. E aí leia-se as pessoas negras, pardas, as pessoas que de alguma forma vão ter essa condição social usurpada. Quando você olha para o caso da exploração sexual, você vai entender que a ação do Estado deveria começar no início, lá na prevenção. Que as pessoas tenham suas condições de vida asseguradas com dignidade, sobretudo, o que a gente coloca na Convenção Internacional da Criança e do Adolescente, sobre criança e adolescente serem prioridades absolutas na proteção.
Então é de toda essa estrutura, que parece às vezes meio louca para gente entender, mas que fica fácil se começarmos a olhar, por exemplo, para a constituição do Brasil, que é uma constituição que vem arrasando os povos originários, com uma ótica de colonização, por isso que a gente tem que falar em decolonização, a gente tem que falar em desconstruir essa estrutura, para poder começar a dar passos concretos no enfrentamento. Porque quando você fala de 180 mil vítimas, a gente entende que esse número ainda é pequeno, entendendo a subnotificação, a invisibilidade das crianças e adolescentes, as situações que os serviços, que a rede de atenção e proteção não enxerga, portanto não consegue notificar, nem orientar. Estima-se que para cada denúncia, vinte fiquem sem ser feitas. Imagine que esse número pode ser bem maior.
(CCLF): Dos dados apresentados pela Unicef, cerca de 80% das vítimas foram meninas e 86% dos autores das violências eram pessoas conhecidas. Com o começo do isolamento social, em 2020, o número de casos registrados teve uma queda, justamente no período em que estas meninas passaram mais tempo com este perfil de agressores. O contexto indica que esta queda representa uma subnotificação. Entendendo que a pesquisa e os dados são aliados na formação e consolidação das Políticas Públicas, como mitigar essas subnotificações?
(AD): A subnotificação vem por um conjunto de fatores. O primeiro deles é a falta de informação sobre o fenômeno. O segundo é que o fenômeno é global, é mundial, está presente em todas as raças, etnias e classes sociais, portanto ele também atinge os técnicos, as técnicas, os parceiros e as pessoas que estão na rede dos serviços, assim é necessário que as pessoas, antes de atuar no tema, iniciem seus processos de ressignificação das suas violências vividas.
Se eu não ressignifico o que eu vivi, eu posso, em dada medida, fazer duas atuações enquanto profissional. Posso fazer uma atuação profissional que eu não consigo ver aquela violência como algo grave, como algo que de fato merece uma notificação ou orientação porque passei por isso, sobrevivi, e hoje estou aqui, e, de repente, se hoje estou aqui, firme e forte, é porque passei por isso. Quando você ressignifica, ao se deparar com aquela situação, você denuncia, mesmo que não seja um profissional da área da saúde. Porque quando você resignifica, você cria uma empatia com quem vive a situação, e, portanto, você é um agente público de cidadania, independente se você está alicerçado numa Organização Não Governamental (ONG). E quando você não ressignifica, mesmo que você tenha, enquanto a gente público, a função de proteger crianças e adolescentes, você vai se deparar com estruturas que vão te impedir de observar isso. E terceiro, essa é uma violência que muda bastante, ela vem de um organismo vivo, de uma pulsão de interação entre seres humanos. Um exemplo disso, hoje, é que toda a exploração sexual tem migrado para o campo da internet, de uma forma gigantesca. Você está lidando com uma situação que requer uma complexidade de conceitos, de compreensão, de ações, de programas, de políticas, de planos, de pactuações internacionais. É importante que a gente reflita o seguinte: esse desejo de enfrentamento deve ser um desejo que pulsa interiormente em cada indivíduo, por isso, eu diria que entre essas três maiores dificuldades, se você sensibiliza, se você mobiliza para a empatia o ser humano, ainda que ele não seja um técnico, um educador, um trabalhador qualquer, a empatia te motiva. Um exemplo disso é a quantidade de denúncias que você tem em relação à violência contra animais. Ela não vem especificamente de militantes, ela vem de pessoas que gostam de animais e que geram uma empatia, mesmo que ela nunca tenha ido numa associação que discuta os direitos dos animais, quando as pessoas que têm aquela empatia veem aquilo, gera nelas uma atitude. Eu acho que a coisa mais importante é gerar essa empatia para que a gente possa se co-identificar e denunciar.
(CCLF): A internet, as redes sociais digitais e os aplicativos de troca de mensagens são uma realidade para boa parte das crianças e adolescentes. Contudo, este ambiente digital não é seguro o suficiente, como aponta o estudo “Violência sexual infantil, os dados estão aqui, para quem quiser ver“, contido no “Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022”. O documento indica que os casos registrados de pornografia infanto juvenil cresceu de 1.767, em 2020, para 1.797, em 2021. Quais são as responsabilidades que as grandes empresas de tecnologia, as big techs, têm ou devem ter para o combate destas violências?
(AD): Ontem a gente estava numa atividade do 18 de maio em Brasília, um seminário que traz inclusive na fala de Tiago, da Safer Net, e Fábio, do Tic Kids, que é uma instituição que busca mapear essa questão da violência sexual e das violações de direitos, mas também do uso da internet. E a Safer Net, especificamente, surge para receber as denúncias contra as violações de direitos da internet.
O que é que a gente observa com as falas dos participantes? Primeiro, que o Brasil é um dos locais que mais produz vídeos para serem hospedados nos aplicativos e sites da internet. Segundo, que você tem uma estrutura montada nas empresas, que muitas empresas hoje buscam essa estrutura, para fazer uma identificação desse conteúdo, dado que várias dessas empresas vão ter suas sedes alocadas nos Estados Unidos ou em alguma parte da Europa, e que diante disso elas assinam e pactuam contratos e recebem multas e, portanto, esses provedores, essas grandes estruturas de disseminação, de arquivamento de dados, de distribuição de dados, de manutenção das redes da internet no mundo todo, quando elas estão alicerçadas na Europa e nos EUA, elas são muito policiadas, elas são muito monitoradas. Então elas, imediatamente, revertem os relatórios, os documentos, as denúncias, têm ações em parceria com a Interpol.
O problema disso é que, ontem foi apontado e eu concordo, boa parte dos adolescentes hoje fazem uso da estrutura da internet de uma forma diferente, por exemplo, de mim que faço a partir de um computador, a partir de pesquisas, a partir do Google Chrome, a partir de utilização de aplicativos para produção de texto, de planilha. A juventude hoje vai usar as redes sociais, basicamente, com aplicativos de conversa, de redes sociais, e que esses próprios aplicativos vão criar estruturas que você não tem muito como impedir, então você acaba trabalhando numa situação sempre de repressão, porque, por exemplo, um adolescente pode criar um grupo de WhatsApp para ser um grupo pornô, para que eles veiculem fotos e imagens. É necessário que se criem leis muito claras sobre essa veiculação de conteúdos, e mais que isso, é importante que não se entenda que a veiculação de conteúdo deve ser protegida com a questão da liberdade de imprensa. Se você veicula conteúdo de ofensa, de violência contra crianças ou outros grupos, povos, raças, não importa, você deve ser responsabilizado.
A gente entra numa complexidade de conceitos, de análises para não ser raso na discussão, mas eu entendo que o que baliza tudo isso que a gente está falando são as leis, os planos, as políticas e os programas, serviços e ações, alicerçadas em cima da legislação, que está alicerçada em cima da ciência.
(CCLF): E qual o papel da escola na identificação de possíveis vítimas?
(AD): Primeiro a gente precisa olhar como a escola está hoje. Você vê diferença na escola particular e na escola pública? As crianças das escolas públicas acessam o saber sobre matemática, português, geografia, inglês, história, ciência? Elas acessam informações e conteúdos qualificados nessa área?
Durante um tempo, a escola pública agregava: de um lado crianças pobres e do outro crianças ricas. Uma criança pobre que ingressasse na escola pública, que embora essa entrada fosse difícil, ela tinha acesso a conteúdos que a libertariam de uma condição de opressão que ela estivesse, por trabalhar nela condições, competências e habilidades pessoais emocionais, educativas, inter relacionais, para que pudesse dar um salto na própria existência. O que eu estou dizendo é que a compreensão que eu faço da escola é que ela é um organismo agonizante. Porque a escola é o local onde as crianças passam a maior parte do tempo, mas a escola pública é um local que as crianças pobres são depositadas, são jogadas, sem nenhum tipo de estrutura. Para que a escola possa acolher, é importante que ela tenha dignidade para ofertar aos seus alunos, que eles cheguem numa escola limpa, iluminada, bonita, saudável, com alimentação fortalecedora, uma biblioteca bacana, um núcleo de apoio, de assistentes sociais, de psicólogos voltados para lidar com um conjunto de demandas, que são demandas relacionadas a questões sociais, econômicas e políticas. Porque a escola é um meio político.
Aí o professor entra na sala de aula, com a dignidade de ser professor, num espaço digno de ensinar, com crianças que são acolhidas por uma política pública que visa levar a educação para a libertação. Porque quando você vê Paulo Freire, o que ele diz é “ensina”, porque você dá ao outro um instrumento de compreensão de si, do outro, da onde ele está, da ecologia do sistema pessoal, individual, coletiva e ambiental onde ele está inserido.
É preciso que a gente comece a ver a escola como um ecossistema, e não que seja para ‘atochar’ no professor. A gente faz as formações com o professor para que ele possa identificar a violência, mas que o posto de saúde esteja pronto para acolher. Que não seja mais uma mochila colocada na mala do professor, que é sem limite. O professor é como uma articulação, é um joelho, um cotovelo que liga um braço ao corpo. Não para querer que esse professor seja o corpo inteiro e ainda dê aula. Assim a escola vira esse espaço desinteressante, sujo, indigno. E como é que esse menino vai ser acolhido se dentro da escola ele recebe também violência? Se os professores estão mal qualificados, mal treinados, sucateados.
Mas eu quero dizer aqui da minha crença na educação. Eu acredito que esse espaço escolar precisa ser redirecionado como um espaço comunitário, é totalmente diferente.
(CCLF): E qual mensagem você gostaria de deixar neste 18 de maio?
(AD): Quero dizer “Oxente, Pernambuco. Faça bonito contra o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes“.
Cada pessoa que testemunha, que escuta, que vê, que sabe de uma criança ou adolescente que passa por uma situação de abuso sexual ou de exploração sexual, ela só tem duas ações a fazer: denunciar ou ser cúmplice. O silêncio é a cumplicidade da ação, a omissão é o agir junto com o abusador.
Então vamos chamar toda a sociedade, todas as instituições da sociedade civil, inclusive contamos muito com o Centro de Cultura Luiz Freire, uma das instituições mais antigas de Olinda, a qual eu respeito muito, porque vocês trabalham com cultura. Nós precisamos trabalhar cada vez mais com a cultura de paz, uma cultura de construção de relações estabelecidas no afeto, no respeito, no diálogo, na liberdade que cada um tem, mas a minha liberdade vai até o direito do outro.
E a gente precisa entender que a gente não está falando de algo que é natural do ser humano, a gente aprende a ser violento. Quando a criança percebe que ali existe cuidado, proteção, ela cresce com a sensação que ela precisa proteger também outras crianças. Por isso é importante que a gente ajude outras crianças a terem acolhimento, a terem um processo de cuidado, inclusive longo, multi, pluri, profissional, articulado e que a rede possa sempre acolher com afeto, respeito e dignidade às nossas crianças.
Adriana Duarte (Mana Duarte) faz parte do Coletivo Mulher Vida e representa a Rede de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes em Pernambuco. É socióloga, arte terapeuta, arte educadora, mas é também bruxa, trabalha com astrologia, tarô e cartas. Acredita no respeito às diversas culturas.
Foto: Reprodução das redes sociais/ Cedida pela autora