São mais de 7 mil línguas e 5 mil culturas presentes em todas as regiões do mundo, possuindo, ocupando ou usando por volta de 22% do território mundial e com uma população que pode chegar a meio bilhão de pessoas. Estes dados da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) nos auxiliam a entender a vastidão e pluralidade dos povos indígenas à nível mundial.

No Brasil, a história do país não é possível ser contada sem este importante grupo social que vêm resistindo há mais de 500 anos. Da invasão européia ao marco temporal (que pode ir ao Senado ainda nesta semana), da folclorização ao extrativismo predatório, a população indígena não cessa de lutar em prol de sua vida e tudo que envolva condições dignas para sua manutenção.

É com a compreensão de que a defesa e promoção dos Direitos Humanos dos povos indígenas é central para a construção de uma sociedade verdadeiramente equânime, que o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) entrevistou a historiadora e ativista Ana Paula Ferreira de Lima¹, da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), com a participação de José Augusto Sampaio, presidente do Conselho Diretor da Anaí, sobre o panorama do atual governo, a preservação da memória e os movimentos sociais relacionados às pautas indígenas. Confira a entrevista completa:

 

Centro de Cultura Luiz Freire: Durante a presidência de Jair Bolsonaro, os povos indígenas foram um dos grupos sociais mais afetados, a ponto de denúncias terem sido feitas ao Tribunal de Haia, pelo crime de genocídio. Com o novo governo Lula, foi criado pela primeira vez na história do país uma pasta dedicada à esta população, o Ministério dos Povos Indígenas. Como você avalia o trabalho que vem sendo feito pela pasta e pela ministra Sônia Guajajara?

Ana Paula: A simples criação do Ministério já é um avanço. Termos uma ministra indígena discutindo de igual para igual, nas reuniões ministeriais, com os demais ministérios (Agricultura, Minas e Energia, Justiça etc.), já sinaliza muito positivamente no sentido de que a pauta indígena está em um lugar de mais atenção e também de mais poder na estrutura do governo.

Além disso, a atuação da ministra tem sido muito efetiva em trazer visibilidade e atenção para a pauta indígena. Ela tem marcado presença em muitos eventos, aparecido bastante nas mídias e redes, sempre com posições muito adequadas, e tem também estado junto aos povos indígenas, infundindo confiança da parte destes nas ações que tem promovido.

Por outro lado, ainda falta um tanto de ações efetivas no gabinete, nos “despachos”, na caneta! Os processos de regularização de Terras Indígenas, por exemplo, ainda caminham lentamente demais! Mas sabemos que isto não depende do ministério apenas. Vale referir a reimplantação da Pngati (Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena), embora suas ações ainda não apareçam, e a recriação do CNPI (Conselho Nacional de Política Indigenista), que esperamos seja efetivado em breve. Vale referir também que o Ministério não cumpre funções finalísticas. Estas cabem à Funai, e é muito necessário fortalecer essa também.

Centro de Cultura Luiz Freire: Pela primeira vez a Constituição Federal de 1988 foi traduzida para uma língua indígena, o nheengatu, reconhecendo o direito desta população a conhecer e ter acesso à Carta Magna, embora, segundo o Censo 2010, existam 274 línguas indígenas no Brasil. No sentido prático e simbólico, o que esse movimento de tradução significa para os direitos da população indígena?

Ana Paula: Conforme dito, trata-se de importante ação de “reconhecimento de direito”, no sentido inclusive de que, com isto, o Brasil também se reconhece como país pluriétnico e multilinguístico. Do ponto de vista prático, a grande maioria dos povos indígenas no Brasil hoje tem bom conhecimento funcional da língua portuguesa e não dependeria tanto dessas traduções, mas do ponto de vista simbólico, como também do político, é muito importante sim, claro!

Centro de Cultura Luiz Freire: Com a constante disputa pelos territórios, o agronegócio, a pesca e o garimpo ilegal têm trazido danos irreparáveis para os povos indígenas e seus locais de vida. Ao ler o relatório “Violências contra os povos indígenas no Brasil – Dados de 2022“, feito pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), os números revelam que no último ano ocorreram 309 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, que afetaram 218 Terras Indígenas (TI). Diante desse cenário, qual o local dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil na defesa e promoção dos direitos indígenas?

Ana Paula: A tragédia para os povos indígenas que foi o último período governamental deve ter servido para demonstrar, inclusive para certos segmentos da esquerda, que a pauta indígena não pode ser percebida nem estar apartada da discussão dos grandes temas nacionais e mesmo globais. Temas como crise climática, gestão de recursos naturais e, principalmente, “modelo de desenvolvimento”, em que resta sobejamente demonstrada a inadequação predatória do modelo agroindustrial exportador – concentrador de renda, gerador de pobreza, devorador e predador de recursos naturais e de vidas – como algo a ser necessariamente superado em prol não apenas dos povos indígenas mas de toda a sociedade brasileira e mesmo global, o que não se alcança sem a indispensável cumplicidade dos povos indígenas e a atenção a suas pautas. Em síntese, “diante desse cenário”, “o local dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil” deve ser o de tomada de consciência e de mobilização “na defesa e promoção” não só “dos direitos indígenas”, mas também dos seus próprios direitos! E de fazê-lo em necessária parceria com os povos indígenas.

Centro de Cultura Luiz Freire: Ana Paula, a quem serve o Marco Temporal?

Ana Paula: Justamente aos interesses desse modelo econômico agroindustrial exportador e colonial, que precisa se expandir e depredar cada vez mais territórios. Estudos de imagens de satélite demonstram que aproximadamente 60% do território brasileiro que já foi agricultado, ou seja, mais da metade, é hoje basicamente pasto improdutivo. A economia colonial predatória precisa devorar mais territórios porque ela vai arrasando o que deixa para trás; assim como o mercado de terras precisa de estoques para especulação. Cada vez que se demarca uma Terra Indígena, ou que se implanta um território de quilombo, uma reserva extrativista, uma unidade de conservação etc., essas são terras que simplesmente saem do mercado, não podem mais ser compradas, nem vendidas, nem apropriadas pelo modelo econômico colonial expansionista predatório. A elite colonial beneficiária desse modelo serve a tese do “marco temporal”.

Centro de Cultura Luiz Freire: Num país onde vivem mais de um milhão e meio de indígenas, de acordo com dados preliminares do Censo 2022, e com um passado e presente sanguinário que buscou o extermínio desses povos, a preservação da cultura e da memória precisa ser priorizada. As Políticas Públicas hoje são suficientes para esta questão?

Ana Paula: Claro que não são suficientes, mas políticas públicas se constroem basicamente com mobilizações e conscientizações sociais. A consciência desses “passado e presentes sanguinários” é fundamental para gerar políticas públicas consequentes não só de preservação mas também de produção de “cultura e memória”.

Centro de Cultura Luiz Freire: O site da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) possui um vasto acervo fotográfico e documental, além de um mapeamento das terras indígenas. Qual o papel da Anaí na preservação da memória e cultura indígena?

José Augusto Sampaio, presidente do Conselho Diretor da Anaí (Foto: Reprodução das redes sociais/ Cedida pelo autor)

Ana Paula e José Augusto Sampaio: A preservação da memória e cultura indígena é matéria de protagonismo dos próprios povos indígenas. Estamos atentos a isso também, sim, mas nisso somos basicamente coadjuvantes, como indutores de políticas públicas ou de processos de conscientização e mobilização da própria sociedade nacional, por exemplo. A Anaí existe para a defesa dos direitos humanos de modo geral, em especial os que dizem respeito mais diretamente a nós mesmos enquanto sociedade nacional e global. O que nos diferencia enquanto organização indigenista é o fato de considerarmos os povos indígenas e a promoção e defesa dos seus direitos como parceiros indispensáveis nesses processos mais globais.

Centro de Cultura Luiz Freire: Há otimismo com o horizonte de direitos dos povos indígenas no Brasil?

Ana Paula: Sim! A crescente mobilização dos povos indígenas enquanto movimento social, a sua conquista de espaços de poder e de representação cada vez mais amplos, a sua impressionante capacidade de resistência às situações mais adversas, testada e comprovada ao longo de séculos, inclusive no período recente, tudo isto nos autoriza a sermos otimistas, sim! Não de um otimismo passivo, claro, mas vigilantemente, atentamente e laboriosamente otimistas.

 

¹Ana Paula Ferreira de Lima é historiadora, com experiência em projetos de organizações não governamentais junto a povos e comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Coordenou o projeto Cunhataí Ikhã, da Anaí, para formação de mulheres adolescentes indígenas na Bahia, em parceria com o Malala Fund.

 

Leia o nosso posicionamento sobre o Marco Temporal.

Foto: Reprodução das redes sociais/ Cedida pela autora