Um dos setores mais afetados pela pandemia da Covid-19 foi a cultura. Com as atividades paralisadas, os(as) artistas e trabalhadores(as) do segmento enfrentaram um longo período de instabilidade, pois, além do medo da infecção pelo vírus, também havia a incerteza em relação ao sustento nesse período.
Neste momento pós pandêmico, novas possibilidades estão surgindo para o setor, principalmente com a Lei Paulo Gustavo, que promete um maior investimento na cultura do país, com R$ 3,8 bilhões distribuídos em âmbito nacional. No entanto, as políticas públicas voltadas para a Cultura, de maneira geral, ainda não estão em sintonia com a realidade dos trabalhadores e trabalhadoras.
Esses e outros assuntos foram abordados na conversa promovida pelo Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) com a produtora, documentarista e trabalhadora da cultura Carol Vergolino, em comemoração ao Dia do Cinema Brasileiro (19).
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF): O audiovisual, embora seja uma arte que requer mais recursos financeiros para produzir, tem se mostrado ao longo da história como uma possibilidade de transformação, como podemos observar no exemplo da TV Viva/Centro de Cultura Luiz Freire. Hoje, existem mais alternativas para reduzir os custos de produção, mas ainda está fora da realidade da maioria da população brasileira. O que falta para democratizar o audiovisual desde as etapas iniciais da produção?
Carol Vergolino: Eu acredito que existam diversas formas de produzir audiovisual em diferentes contextos. Temos o contexto da grande indústria, na qual Pernambuco, por exemplo, ainda não está inserido. Aqui trabalhamos com orçamentos pequenos, filmes e séries de baixo orçamento se comparados com o restante do país. No entanto, há uma carga de trabalho extenuante, com seis dias de trabalho e doze horas por dia, com apenas um dia de folga. Esse modelo da indústria também precisa ser revisto. Ao mesmo tempo, hoje em dia existe uma diversificação de equipamentos e o uso do digital, o que possibilita um acesso mais democrático, já que alguns desses equipamentos são mais baratos do que eram antes. Muitas pessoas conseguem produzir de diferentes maneiras, o que também democratiza o acesso. No entanto, é necessário alcançar todas as realidades brasileiras por meio de formação e difusão. As pessoas precisam ter acesso aos recursos da indústria, a editais, e é importante que programas como a Lei Paulo Gustavo possibilitem esse acesso democrático, para que o financiamento alcance as áreas periféricas, os quilombos, as comunidades indígenas, para que essas pessoas também possam contar suas histórias.
CCLF: Quais referências você considera importantes quando falamos em cinema e audiovisual como um caminho político de transformação social?
Carol Vergolino: Eu tenho muitas referências. Por exemplo, a TV Viva é uma delas, por nos proporcionar um contato direto com a comunidade e permitir que as pessoas se vejam e tenham acesso à comunicação de forma democrática. Ao mesmo tempo, existem diversos filmes que nos fazem refletir, como o cinema documental, que questiona diretamente a realidade, assim como as ficções que nos inspiram a transformar. Eu acredito que o cinema conta histórias que podem nos levar a pensar em outros mundos possíveis, e isso fica impresso na tela. Vemos o sonho de um outro mundo possível, que nos inspira a realizá-lo.
CCLF: No último dia 10, ocorreu um ato promovido pela sociedade civil e pela classe artística de Pernambuco, chamado “Salve o São Luiz”, no qual foram cobradas ações do poder público em relação ao retorno das atividades dos cinemas, juntamente com uma adequada e proativa preservação desses importantes equipamentos culturais, que estão fechados há cerca de um ano e tiveram parte da já reduzida equipe demitida. Outro cinema histórico que está fechado é o Cine Olinda, que não recebe público há praticamente 40 anos, ou seja, ele está fechado por mais tempo do que projetando a sétima arte. O fechamento e a continuidade desses equipamentos culturais revelam o quê?
Carol Vergolino: Os equipamentos culturais do estado estão abandonados há muitos anos! O Governo do Estado vem investindo em ciclos há décadas. Temos o ciclo do São João, do Natal, do Carnaval, do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), que realmente movimentam a cadeia cultural. No entanto, o orçamento destinado a esses eventos ainda é muito baixo. E como podemos fazer a manutenção dos equipamentos? Vemos o Museu de Arte Contemporânea (MAC), o Cine Olinda, o Cinema São Luiz, o Museu da Imagem e do Som (Mispe) todos fechados há anos. O Cinema São Luiz está fechado por menos tempo, mas ainda assim falta investimento para esses equipamentos. O Estado precisa investir, mas o que vemos é um desinvestimento na cultura. Em 2012, o orçamento para a cultura no Estado foi de 126 milhões de reais, e agora, para este ano, está previsto apenas 115 milhões de reais, o que é muito pouco para um investimento do Estado. Dez anos depois, estamos investindo menos. Infelizmente, o resultado disso é o sucateamento dos equipamentos e a falta de políticas públicas para a cultura. O Funcultura, que é um Fundo de Incentivo, pouco reflete o que é uma política pública de cultura em nosso Estado.
CCLF: E como fica a situação da classe trabalhadora da cultura nesse cenário, considerando que o setor terá o maior investimento da história do Brasil?
Carol Vergolino: A classe trabalhadora da cultura foi a primeira a parar e a última a voltar durante a pandemia. Ela enfrenta muitas dificuldades. Os trabalhadores da cultura precisam lidar com a informalidade e a falta de acesso sistemático a recursos. Há uma insegurança constante sobre se o projeto deles conseguirá ou não captar recursos. Não existe uma política pública contínua que permita que os trabalhadores da cultura vivam de seu trabalho. O trabalho na área cultural é muito sazonal, mas os recursos demoram a chegar, e as pessoas não conseguem acessá-los. Não há seguridade, nem direitos trabalhistas. Essa classe precisa ser reconhecida como trabalhadora e ter garantidos seus direitos trabalhistas, de forma a garantir uma vida digna e a possibilidade de produzir sua arte, divulgá-la e disseminá-la.
CCLF: Quais são as perspectivas apontadas pelos movimentos para a retomada dos cinemas de rua e a democratização do audiovisual?
Carol Vergolino: Em relação aos cinemas de rua, existe um projeto do Governo do Estado chamado “Cine de Rua”, que infelizmente está sendo descartado. Esse projeto visa a reforma de diversos cinemas de rua em Pernambuco, nas cidades de Arcoverde, Palmares, Camaragibe, Olinda, Recife, Afogados da Ingazeira, Paulista, entre outras. Esses cinemas precisam de um investimento relativamente baixo para serem reabertos. Para reabrir sete cinemas de rua, por exemplo, o orçamento necessário é de 2,1 milhões de reais. É um valor muito pequeno para promover a diversidade de cidades com cinemas de rua, que geralmente têm preços populares e exibem produções do nosso Estado. É extremamente importante que as pessoas tenham acesso à cultura, pois a cultura é um direito. É o direito de quem produz cultura, dos artistas, mas também é o direito da população em geral de consumir cultura, pois é a cultura que nos define como brasileiros, pernambucanos. A cultura alimenta muitas pessoas, é alimento tanto para o corpo quanto para a alma. A indústria cultural representa 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, o que é maior do que a indústria automobilística. Além disso, há o aspecto simbólico e o bem-estar do cidadão.
¹Carol Vergolino é feminista e antirracista. Trabalhadora da cultura, produtora audiovisual e documentarista, codeputada estadual pela mandata coletiva das Juntas (PSOL/PE- 2018 a 2022), assessora parlamentar do vereador Ivan Moraes. Participou da equipe de transição da cultura no audiovisual do Governo Lula, acredita na política pública da cultura como ferramenta de transformação da sociedade e fortalecimento da democracia.
Foto: Reprodução das redes sociais/ Cedida pela autora