Desde 2007 que o 21 de janeiro marca o Dia Nacional de Enfrentamento à Intolerância Religiosa, em memória à Mãe Gilda, ativista e Iyalorixá que fundou o terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, na Bahia.

A data é mais uma oportunidade de demarcar a pauta da cultura de paz e respeito à liberdade de crença, direito esse que perpassa por vários dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, à exemplo do artigo 18, onde é dito que tal direito é também “a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular”.

No entendimento que enfrentar a intolerância religiosa é falar também da nossa Democracia e dos Direitos Humanos, que o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) conversa com o comunicador e integrante de movimentos sociais, Jackson Augusto.

 

Confira a entrevista 

 

Centro de Cultura Luiz Freire: A Constituição Federal de 1988 versa no Artigo 5º, sobre a igualdade das pessoas perante a lei, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Contudo, nos últimos anos têm se registrado um aumento nos casos de intolerância religiosa, como demonstra os dados de 2024 do Disque 100, canal de denúncia de violações de Direitos Humanos. O ano passado computou mais de 2 mil casos, o que significa um aumento de 80% em relação ao ano anterior.

Diante tal cenário, políticas públicas e práticas que promovam o respeito pela religiosidade dos mais diversos grupos sociais mostram-se urgentes; mas quais caminhos são possíveis para diminuir a distância entre o que versa a Constituição e o que se faz real?

 

Jackson Augusto: A gente precisa começar primeiro entendendo que moramos num país que foi fundado na violência. A linguagem da violência é uma linguagem constituinte da nossa identidade, faz parte de quem nós somos, de como o Brasil se torna Brasil. A linguagem da violência, inclusive religiosa, com a religião sendo instrumento de violência para outros povos também é uma linguagem fundante do país.

Então falar de violência e falar de Estado é algo histórico, é algo secular, algo que sempre ocorreu. Quando pensamos nessa identidade de violência, como a gente pode entender como diminuir ou como mudar essa realidade? Eu acho que a primeira coisa que precisamos entender é que estamos num Brasil, que entre 2018 e 2023, viveu um Estado extremamente violento contra as pessoas mais pobres, as pessoas negras, mulheres, e as pessoas que fazem parte de grupos minoritários. Temos aí um histórico nos últimos anos de violência contra terreiros, que sempre ocorreram, mas que vão se intensificar principalmente nesses tempos.

Eu acho que os caminhos possíveis para diminuir essa distância é a gente conseguir fazer com que as políticas de promoção de liberdade religiosa consigam valer para todas as religiões. Que todas as religiões possam ter direito ao culto, que todas as religiões possam ter direito a professar a sua fé e que o Estado consiga garantir esse direito à crença.

É ter justamente uma política pública robusta quanto isso, como por exemplo facilitar que qualquer expressão de fé possa conseguir se organizar, se institucionalizar no Brasil. Muitas vezes terreiros de candomblé, terreiros de umbanda ou religiões de matriz africana ou indígenas não conseguem um alvará, não conseguem um CNPJ. Então que a gente consiga de fato que o Estado Democrático de Direto garanta o direito ao culto, o direito à crença de maneira pública. Acho que isso é o principal.

 

Centro de Cultura Luiz Freire: Dentre as religiões mais perseguidas, as afro-brasileiras e as de matriz africana são constantemente alvos de violências, frutos do racismo que opera em todos os níveis da sociedade. Em 2023, um estudo feito pela JusRacial apontou que dos 176 mil processos relativos a casos de racismo, 33% eram sobre intolerância religiosa.

Qual a importância de pautar o combate à intolerância religiosa também por um olhar racial?

 

Jackson Augusto: Eu acho que quando a gente pensa em violência, racismo e religião, a gente entende que existe um ódio a tudo que vem da África, e como uma pessoa que é evangélica, é importante a gente reconhecer que no Brasil a grande guardiã da cultura negra foram as religiões de matriz africana. Então no Brasil, como o Brasil se constitui, quem guarda a cultura negra no país são os terreiros, os terreiros de candomblé, os terreiros de umbanda, são nesses territórios, nessas organizações que se preserva a memória.

É importante primeiro a gente garantir que tenham reconhecimento, que a cultura brasileira só existe por conta da proteção dos terreiros, quando a gente pensa na contribuição da cultura negra na cultura brasileira – que é enorme. Então não tem como falar de brasilidade sem falar de negritude, impossível. Perde-se 80%, vamos dizer, da identidade brasileira.

Então pautar o combate à intolerância religiosa é também afirmar a nossa identidade enquanto povo, pautar o combate à intolerância religiosa por um olhar racial é dizer que no Brasil o racismo estrutura e organiza todas as violências. E também é garantir que esses espaços sejam vistos como espaços dignos de respeito, de direitos, de igualdade e não devem ser demonizados.

A gente percebe que o racismo à brasileira existe desde sempre, obviamente que com a ascensão do bolsonarismo e o lado evangélico mais radical ajudou a crescer os números, sim. Mas terreiros são queimados e casas de candomblé são fechadas desde outros tempos no Brasil. Então isso não é um problema somente dessa transição religiosa que a gente está vendo, isso é um problema de país que a gente precisa resolver.

 

Centro de Cultura Luiz Freire: Seja na luta pela redemocratização do país, seja na ocupação de cargos públicos, a religião e a política se misturam no Brasil.

Jackson, você que está como um dos coordenadores do Movimento Negro Evangélico, como compreende o papel e a relação da religiosidade com os Movimentos Sociais?

 

Jackson Augusto: Eu costumo dizer que a gente precisa entender a complexidade do Estado Democrático de Direito e da laicidade do Estado também. A laicidade do Estado foi proposta pelo movimento protestante, pelo movimento evangélico no século XVI. Será que esse Estado laico contempla um país como o Brasil? Essa ideia de Estado laico? Na minha visão, não. Mas a ideia de um Estado que não tenha uma religião oficial, sim, me contempla. Agora a gente precisa entender que não adianta dizer que temos um Estado laico se não existe a garantira do culto, se não existe a garantia da liberdade religiosa. Então, por último, a laicidade do Estado serve para garantir direitos para todas as religiões e todas as crenças.

A gente precisa entender que as relações da humanidade sempre foram colocadas a partir de uma construção com a religião, então religião e política sempre andaram lado a lado, sempre, sempre, sempre. A minha questão é essa ideia. Essa religião conspira a tomada do Estado como ato político? Ou a gente olha para a religião como um motor para a nossa ação política, como um motor de incentivo para a nossa ação política? Isso é uma outra coisa. E incentivar a nossa ação política em direção a emancipação já é uma outra coisa.

Então o papel da religião está no incentivo para o bem, está no incentivo para a justo, está no incentivo para o bem comum, e não da tomada do poder, e não para o controle dos corpos. É importante colocar isso. A relação da religião é uma relação de motor, de insumo para nós nos organizarmos enquanto sociedade, inclusive enquanto movimento social.

Sem a religião a gente não teria por exemplo grandes revoluções. A Revolução Haitiana é uma revolução que veio da força da religião e da espiritualidade vodu. Os movimentos dos direitos civis vieram da força do protestantismo negro. O papel da religião é um papel importante. Na África do Sul com a libertação de Mandela, a gente teve bispos anglicanos como Desmond Tutu, que foi importante. Aqui no Brasil, na ditadura civil-militar nós tivemos Dom Helder Camara. A gente teve a Revolta dos Malês que foi a maior revolta de pessoas escravizadas no Brasil e tem muito a ver com a tradição muçulmana. Então a religião serve para isso também, mas não para projeto de poder e a gente precisa diferenciar isso.

 

Centro de Cultura Luiz Freire: Você tem uma iniciativa muito interessante que comunica e educa sobre “Evangelho, negritude e justiça racial”, assim diz o perfil da rede social do Afrocrente.

Compartilha com a gente essa história? Como nasceu esse trabalho, o que ele tem significado para você e como está hoje?

 

Jackson Augusto: O Afrocrente surge em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, coincidentemente, e existia uma ascensão da luta antirracista muito forte, uma crescente do movimento negro. Nesse mesmo ano, o Movimento Negro Evangélico, aqui em Recife, atuou bastante, mobilizou muito. Foi o ano que surgiu a Coalizão Negra por Direitos também.

Então foi uma ano em que a questão racial estava cada vez mais forte e eu comecei – eu era um jovem negro da igreja – buscando respostas e já tinha feito minha caminhada de várias leituras para dar respostas para minha identidade, uma pessoa que é negra, mas que está dentro da igreja, eu não estou dentro dos terreiros, minha espiritualidade é outra.

Então como é que essa minha espiritualidade conversa com quem eu sou? Como é que ela dialoga com quem eu sou? Como ela dialoga com a espiritualidade africana, pensando a cultura, a mitologia, o conhecimento, a sabedoria africana?

O Afrocrente é essa busca minha enquanto jovem que cresceu na igreja por respostas. E comecei a encontrar várias teólogas, teólogos, personagens históricos, tanto no Brasil quanto no mundo, pessoas negras que nunca foram contadas sobre suas existências, nos livros de teologia que li ou nos cursos que eu fiz sobre a questão teológica, ou nas aulas da Escola Bíblica Dominical (EBD) sobre a história da igreja. A partir disso eu comecei a pegar essas produções de teólogos, sociólogos negros, historiadores negros sobre religião, evangélica especificamente, e comecei a divulgar, a comunicar isso, esses pensamentos, essa contribuição, essas histórias na internet.

E acabou que o Afrocrente foi esse canal, esse espaço que quase se confunde comigo, né? As pessoas acabam me chamando de Afrocrente, mas o canal que é o Afrocrente, não eu. Muito vem desse tempo no twitter, eu usava muito na época, então fez muito sentido usar desse termo que já era usado ali no twitter por um nicho de pessoas negras evangélicas.

Assim que surgiu o Afrocrente. E tem um significado muito forte, a gente ainda produz conteúdo, já teve podcast, a gente também já fez outras contribuições em outras redes sociais, não somente vídeos ou canal do youtube, mas se pretende uma plataforma mesmo, ora eu falando, mas ora também amigos, colegas referências. É um espaço que dá voz para essas pessoas também.

 

Jackson Augusto é comunicador, integra a coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico e é membro da Coalizão Negra por Direitos. Estudante de Jornalismo e Teologia, já foi colunista no The Intercept Brasil e tem textos escritos para Folha de São Paulo, Marco Zero Conteúdo e Revista Continente.