O Projeto de Lei (PL) 2630, tem como objetivo ajudar a criar um ambiente mais seguro na internet com a responsabilização das plataformas e redes sociais digitais sobre os conteúdos impulsionados, para que sejam livres de fake news e discurso de ódio.
O processo de desinformação no ambiente digital tem mostrado forte impacto negativo na sociedade brasileira, seja ao descredibilizar as vacinas ou ainda organizar movimentações antidemocráticas, como foi na tentativa de Golpe de Estado do 8 de Janeiro.
Para entender melhor sobre o PL 2630, mais conhecido como PL das Fake News, e pegando como gancho o Dia da Liberdade de Pensamento (14), conversamos com a jornalista Ramênia Vieira, que é também especialista em Gestão de Políticas Públicas, coautora do livro “Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news” e integra o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Centro de Cultura Luiz Freire: No Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos temos: “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião […]”. Há como se garantir o direito à liberdade de pensamento sem o direito à liberdade de expressão?
Ramênia Vieira: A Declaração Universal dos Direitos Humanos elenca vários direitos, inclusive o Intervozes é uma entidade que luta pela efetivação do Direito Humano à Comunicação, e nesse sentido a gente tem que pensar sempre na questão que nenhum direito é absoluto. Nós temos uma Declaração com vários Direitos Humanos, direito que todo humano tem, só que todo direito vai até o limite do direito do outro, então você não pode ultrapassar outros Direitos Humanos para manifestar o seu. A sua liberdade de pensamento e liberdade de consciência e religião são mais fáceis de ter eles efetivados porque ninguém vai te proibir, ou ninguém deveria te proibir, de poder expressar o seu pensamento, a sua consciência e a sua religião dentro dos espaços. Com o direito à liberdade de expressão, se, a partir dele, você extrapolar qualquer outro direito, você vai responder, porque não se pode usar esse espaço da liberdade de expressão para atacar o direito de outras pessoas. Tem como se garantir esses direitos da liberdade de pensamento sem anular o direito à liberdade de expressão, porém qualquer direito seu ele vai até onde começa o direito do outro, se o seu direito está violando o direito de outra pessoa, aí já não passa mais por essa parte de ser um direito humano, até porque senão a gente viveria numa barbárie. Nós temos vários direitos, mas também temos vários deveres.
Centro de Cultura Luiz Freire: Ao mesmo tempo, muitos grupos se escudam numa dita liberdade de pensamento, opinião e expressão para cometer racismo, machismo, lgbtfobia e outra opressões. Nesse contexto, as redes sociais digitais têm sido campo fértil para a disseminação de discurso de ódio e fake news. Qual o limite entre a censura e a liberdade?
Ramênia Vieira: Essa liberdade de pensamento, opinião e expressão não pode ser usada para cometer crimes, no caso, racismo, lgbtfobia e outros tipos de crimes que são cometidos na internet, são crimes e existem na legislação brasileira. Então não se pode usar da falsa liberdade de expressão para cometer crimes, você tem a responsabilidade de saber que você cometendo esses atos você vai responder por eles.
A gente vê hoje uma disseminação descontrolada de discurso de ódio, de desinformação, e aí vale ressaltar que a desinformação ela não vem junto com a internet, ela vem desde que o Brasil é Brasil, então a gente tem vários processos que criaram essa desinformação, várias desinformações, para controlar a população e hoje a gente vê que temos as redes sendo usadas para disseminar um discurso violento, mas também para desinformar a população de acordo com uma política que se espera – uma política violenta – e que muitas vezes pode prejudicar fortemente a sociedade, como no caso de tentativas de derrubar a democracia, de tentativas de diminuir o acesso das pessoas à vacinação. Nós tivemos um processo no Brasil, num país em que a vacinação era a coisa mais normal, que as pessoas tinham responsabilidade de estar sempre procurando qual era a época certa vacinar contra várias coisas, e hoje nós temos um país que está voltando a ter algumas doenças que a gente pensava estarem já controladas. Então têm vários fatores envolvidos.
Quando a gente fala em censura das plataformas, na verdade as pessoas falam que o PL 2630 vai censurar as pessoas, mas na verdade a censura já existe hoje nas plataformas. Hoje as plataformas moderam conteúdos a partir do pensamento delas e que nós não sabemos, e que não está claro em nenhum lugar, qual é o tipo de moderação e como é feita essa moderação. A gente não sabe se essa moderação foi feita por inteligência artificial ou se foi feita por humanos. A gente não sabe nem quantas pessoas trabalham na moderação de conteúdos no Brasil, e se são brasileiros na verdade né, porque a moderação humana pode até estar em outro país sendo feita por tradução, e aí a gente sabe que na tradução tem vários problemas. Então a gente não tem esse tipo de transparência em relação às plataformas, nós temos um problema bem grande em relação a hoje elas moderarem e derrubarem conteúdos e você não ter nenhum canal de diálogo com essas plataformas, você não tem como contrapor porquê a decisão foi tomada. Você acaba tendo o seu direito violado porque você teve um conteúdo que foi retirado do ar e muitas vezes as plataformas não deixam claro qual foi a motivação do porquê que aquele conteúdo foi removido.
Centro de Cultura Luiz Freire: O Projeto de Lei (PL) Nº 2630/2020, mais conhecida como a PL de combate às Fake News, tem como proposta criar um ambiente digital mais seguro, livre do processo de desinformação, exigindo transparência e responsabilização das big techs frente ao discurso de ódio e das fake news em suas plataformas e redes sociais. Por outro lado, existe uma campanha de desinformação sobre o PL por parte das big techs. Quais são as razões para estas empresas estarem contra o PL 2630?
Ramênia Vieira: As plataformas fizeram uma movimentação, uma campanha desinformativa. Primeiro que eles chamaram como PL da Censura, quando na verdade o PL não fala nada sobre essa questão, na verdade ele exige mais transparência na moderação de conteúdo e o devido processo, que é as plataformas deixarem de moderar de livre e espontânea vontade e elas passarem a moderar a partir de processos que vão ser decididos dentro do judiciário. Então a gente teve essa campanha de fake news das próprias redes sociais, e isso a gente sabe que tem muito a ver com o modelo econômico dessas plataformas, as plataformas hoje lucram muito mais com discurso de ódio e com fake news do que com outras questões e por isso elas não têm interesse nenhum de diminuir esse clima odioso e desinformativo das redes. Uma das questões que a gente tinha ali desde o início da tramitação do PL na Câmara é a questão de que elas sejam responsabilizadas pelos conteúdos impulsionados, que é mais transparência para que o usuário saiba porquê tal conteúdo publicitário impulsionado está chegando para ele, e principalmente que a gente saiba também e que elas tenham responsabilidade quando elas permitem o impulsionamento de conteúdos que estão propagando discurso de ódio e propagando desinformação. No caso do 8 de janeiro foi muito forte, especialmente no YouTube, a forma como elas não atuaram para diminuir aquele clima de atentado à democracia, elas permitiram que vários canais impulsionados ficassem aparecendo para as pessoas e isso acirrando ainda mais ânimos e pessoas que estavam naquele mesmo clima. Então a gente tem uma preocupação muito grande que não seja aprovada uma regulação das plataformas, esse é um debate que está sendo feito hoje em todo mundo, nos Estados Unidos, na União Europeia, na Alemanha, você já tem algum tipo de regulação das plataformas e a gente precisa ter um modelo que responda às expectativas do Brasil e não de fora, que respeite as nossas diferenças, que tenha a cara do brasileiro em relação à regulação das plataformas. Hoje é muito fácil para as plataformas lavarem as mãos em relação ao que está sendo propagado lá, inclusive quando elas está recebendo dinheiro, porque é fácil dizer que não tem como tecnicamente, é o que ele usam volta e meio, que não tem como tecnicamente fazer uma varredura de todo conteúdo, mas eles têm que pelo menos se responsabilizar por aquele conteúdo que é impulsionado, aquele conteúdo que é permitido a ele ter um maior alcance e que a plataforma está recebendo verba por ele. A gente fica numa situação de sentir que o Brasil não está sendo olhado com os olhos que eles olham para outros países no mundo, porque lá eles estão sendo regulados e aqui eles não querem permitir nenhum tipo de regulação.
Centro de Cultura Luiz Freire: Quais são as perspectivas do processo de regulamentação das plataformas no atual cenário político?
Ramênia Vieira: A gente tem uma expectativa de que no retorno do recesso parlamentar, agora em agosto, a gente tenha de volta o processo de regulação das plataformas, que o PL 2630 volte a ser colocado em pauta, até porque nós temos visto muito que o Arthur Lira tem falado bastante dele nas últimas conversas e nas últimas entrevistas que ele tem feito. A gente tem uma perspectiva de que esse processo seja retomado, sabemos que houve uma pressão muito grande em relação aos políticos que votaram favoráveis à urgência do Projeto, a gente sabe que essa pressão atrapalha bastante, porque muitas vezes o parlamentar se sente coagido, quando na verdade são bots que estão sendo usados para falar mal deles nas redes sociais, muitas vezes ele acha que são realmente pessoas eleitoras dele. Tem algumas situações que percebemos que as plataformas fizeram terrorismo e outras pessoas e outros atores fizeram terrorismo junto ao parlamentar para que ele votasse contra o Projeto quando ele voltar à pauta, mas a gente acredita que o parlamento vá enfrentar essa questão porque é uma questão que está sendo trabalhada em todo o mundo. Não tem como você ignorar que uma regulação de plataformas é importante, qualquer setor econômico precisa ser regulado. E a gente percebe que com os massacres nas escolas, a forma como as pessoas se organizaram e utilizaram dessas plataformas para fazer convocações para atos antidemocráticos e como as plataformas tiveram responsabilidade e não evitaram que essas coisas seguissem adiante. Sabemos que o parlamento hoje tem um papel fundamental de enfrentar essa questão, e nós do Intervozes, da Coalização Direitos na Rede, que é uma entidade da qual o Intervozes faz parte e que tem um grupo de mais outras 50 e poucas entidades, a gente trabalha para que esse Projeto não morra dentro da Câmara, que ele seja realmente votado ainda no primeiro mês do retorno parlamentar.
Centro de Cultura Luiz Freire: Quais são as consequências da desinformação no campo dos Direitos Humanos e na Democracia brasileira?
Ramênia Vieira: As consequências da desinformação em relação aos Direitos Humanos e à Democracia brasileira é uma questão que a gente conversa de até como as nossas pautas estão sendo roubadas. Temas históricos que o campo dos Direitos Humanos sempre trabalharam estão sendo sequestrados para um discurso da ultra direita, como é o caso da liberdade de expressão, que foi um discurso que foi sequestrado pela extrema direita e quando na verdade ele sempre foi um tema trazido pelo campo progressista. Não é só que pode trazer de consequências sérias, é o que já trouxe. Tem o caso da Cambridge Analytica, que a gente sabe o quanto colaborou para uma eleição nos EUA que não foi boa, e que colaborou para que o processo eleitoral no Brasil também não fosse sadio, não fosse um espaço correto de disputa e hoje inclusive a gente faz o questionamento: Por que o impulsionamento de político nas redes? E aí eu não digo do impulsionamento do político em si, mas do impulsionamento eleitoral. Isso é muito opaco, não tem nada de transparência, é completamente opaco como se trata o impulsionamento hoje de campanhas a partir das plataformas. E nós tivemos isso infelizmente aprovado dentro do parlamento com muita força das big techs para que esse processo acontecesse e ele acontece hoje de maneira muito forte dentro das redes sociais. Eu vou trazer um exemplo, hoje se a pessoa vai escolher um parlamentar, nós temos aí a eleição municipal já às portas, ano que vem nós já estamos nesse processo, durante o período eleitoral de 2022 eu lembro que eu ia pesquisar alguns candidatos e as duas primeiras páginas sobre aquele candidato no Google não aparecia nada de desagrado com o candidato. O candidato era a pessoa mais perfeita do mundo, quando na verdade você sabe que aquele candidato tem vários processo, tem vários problemas, inclusive de violações dos Direitos Humanos. Você não tem nem transparência para fazer a sua pesquisa, para você ter um parlamentar realmente com o perfil das coisas que dialogam com o que você tem interesse.
Centro de Cultura Luiz Freire: E qual o papel de organizações como o Coletivo Intervozes na defesa de uma comunicação democrática?
Ramênia Vieira: Hoje no Intervozes e na Coalização Direitos na Rede, temos feito um trabalho em que o PL 2630 se tornou a principal pauta dessas mais de 50 organizações, exatamente por causa dessa forma como a falta de uma regulação das plataformas atinge a Democracia, a Comunicação, e o Direito à Comunicação.
Você acha que às vezes com a internet você tem um processo muito mais amplo, que chega a muito mais pessoas, e isso a gente ouve dos nossos parceiros, especialmente nas pautas do Movimento Negro, do Movimento de Mulheres, do Movimento LGBTQIAP+, mas justamente essas mesmas páginas têm conteúdos constantemente derrubados pela moderação de conteúdo nada transparente das plataformas. E ao mesmo tempo, quando a gente dialoga sobre isso, a gente pergunta para quem está chegando o seu conteúdo? Porque a nossa comunicação está cada vez mais cercada. A gente muitas vezes não consegue acessar coisas que seriam do nosso interesse porque estamos cercados por outras coisas que desviam o foco da nossa atenção. Às vezes a gente entra para procurar certa coisa numa rede social e vai parar em outra coisa completamente diferente daquilo que estava pensando, porque tem a sua atenção desviada o tempo inteiro.
Não temos uma democracia real dentro dessas redes sociais, dentro dessas plataformas, os conteúdos desses movimentos estão chegando para quem já iria procurar ativamente páginas com esses interesses, mas você não consegue furar essas bolhas. No entanto, a gente vê que vá ́rias páginas de ultra direita e direita furaram as bolhas delas. Eu vou dar um exemplo, aqui na pandemia a gente teve um processo de muitas lives, de muitas coisas acontecendo, e lembro que fiz vários cursos pela internet nesse período, e toda vez que acabava alguma coisa, o que aparecia como sugestão de vídeo posterior para mim não era algo relacionado aquilo que eu estava assistindo, muitas vezes aparecia Terça Livre, Jovem Pan. Então apareciam coisas que não tinham relação nenhuma com o conteúdo, inclusive conteúdos do FNDC que eu estava assistindo e de repente entrava no final o Terça Livre. Esses conteúdos que normalmente entram impulsionados a gente só vê furar a bolha quando vêm da direita.
Ramênia Vieira é jornalista, especialista em Gestão de Políticas Públicas. É associada do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social há 18 anos, entidade em que atua na coordenação de incidência política. É coautora do livro “Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news”.
Foto: Reprodução das redes sociais/ Cedida pela autora