Ao entrar numa casa mal cuidada ou abandonada é recomendado ter muita atenção e cautela, as janelas estão quebradas, as paredes frágeis, algumas rachaduras podem ser vistas no chão e infiltração no teto. O local já não é mais propício para que alguém esteja lá.
Imaginemos agora que a casa foi deixada nesse estado de forma proposital. Pois bem, foi assim que o Ministério da Educação (MEC) foi tratado nestes últimos anos, especialmente durante o governo Bolsonaro. Por lá, passaram 5 ministros, Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Carlos Decotelli, Milton Ribeiro e Victor Godoy, todos acumulando polêmicas e assumindo um projeto de destruição da educação brasileira. Milton Ribeiro, por exemplo, além de destilar intolerância – o que parece ser critério para fazer parte do antigo governo – ficou marcado por um esquema de propinas com igrejas para a construção de obras públicas.
Diante deste cenário se faz necessário refletir sobre o que se abre com o novo governo federal, em especial com o Ministério da Educação sob a administração de Camilo Santana, ex-governador do Ceará e recentemente eleito senador. Este foi o tema da entrevista com Liz Ramos, educadora do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) e ativista pelo direito à educação.
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF): Liz, como você avalia os primeiros dias da gestão de Camilo Santana à frente do MEC? Já é possível fazer tal avaliação?
Liz Ramos (LR): Os primeiros dias do novo MEC com Camilo Santana foi para arrumar a casa e fazer uma análise do que já foi feito. Desmontar o desmonte que estava sendo feito pelo governo Bolsonaro, principalmente no papel de formulação de políticas de educação que o MEC tem, das macropolíticas.
Neste momento de arrumação foi feito um Grupo de Trabalho (GT) de transição para realizar um diagnóstico em todas as áreas. Nas políticas, mas também na gestão do MEC, na questão financeira, nos contratos, nas obras paralisadas.
O governo que se encerrou agora foi desastroso e teve o propósito de desmantelar o MEC como aparelho de Estado que tem a responsabilidade de orientar, de coordenar, de financiar, de promover em última instância a garantia da educação dos cidadãos e cidadãs brasileiros.
CCLF: Como geralmente funciona a questão financeira para a educação?
LR: A grosso modo são duas fontes: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O primeiro financia a educação nos municípios, estados e à nível federal, e é como se não entrasse na conta do governo e fosse direto para a educação. Já o segundo é como se fosse um banco que atua e financia as redes. Por exemplo, quando se quer construir creches se busca o FNDE, que funciona como um fundo nacional do MEC.
Vários programas da educação hoje estão alocados dentro do FNDE e uma das coisas que o governo Bolsonaro fez foi tirar recursos de lá para colocar no orçamento secreto. É como se tirasse o dinheiro da construção de creche e mandasse para emendas parlamentares, que não necessariamente são para a educação. E essa é uma questão muito séria do ponto de vista do governo federal e do papel do Ministério.
CCLF: Existia um projeto neoliberal em diferentes áreas do governo. Como foi esse projeto na educação?
LR: Foi algo até inconstitucional. Era o fortalecimento de iniciativas ultraconservadoras como a escola sem partido, a educação em casa, o estímulo à criação de escolas cívico-militares, tudo isso com recursos do MEC. Esse foi o projeto Bolsonaro para a educação.
E não houve espaço de diálogo com a sociedade, seja com conferências ou fóruns da educação, já que estes espaços também foram desmantelados.
CCLF: Podemos esperar uma mudança nessa postura com o Ministério da Educação neste novo governo Lula?
LR: A partir do trabalho do GT da transição com o diagnóstico e com as falas do novo ministro já conseguimos ver referências à importância da sociedade civil na educação. Vemos isso com a própria composição do GT com movimentos sociais, sindicatos, fundações empresariais, terceiro setor, universidades, organismos de pesquisa, políticos ligados à área, movimento negro, movimento indígea, pessoas com deficiência, profissionais da educação infantil, dentre outros.
Mas temos que ter cautela com o olhar empresarial da política pública, que acha que a gestão da política pública deve ser feita baseada na gestão empresarial, e a educação, ouso dizer, que é a política mais complexa, pois envolve os cidadãos do nascimento até a morte, da primeira infância até a educação continuada.
CCLF: O que você achou da indicação de Camilo Santana para a pasta?
LR: Isso é uma leitura pessoal e de um determinado segmento, mas a questão de colocar um ex-governador de um estado que teve um papel importante na eleição é uma questão política, é colocar um aliado político no Ministério mais importante pela sua capilaridade.
Para montar esse quebra cabeça de formar um governo, a gente faz uma leitura que os institutos e grupos empresariais tiveram muito peso na escolha da equipe técnica. A secretária, por exemplo, tem experiência de gestão, mas de certa forma tem relação com essa composição política também.
O que o governo traz de prioridades, em seu propósito, são diversas questões que já estão presentes, como a importância da educação, a educação associada ao combate à fome, o papel do governo federal na educação, a retomada do diálogo com a sociedade civil, com o Plano Nacional da Educação (PNE) e o novo Plano.
É um plano de dez anos que orienta as políticas para os estados e municípios, é um plano estratégico, e o Brasil tem uma carência disso. Fazemos parte de um segmento da sociedade que pede o planejamento estratégico para uma construção, entendendo que a educação não começa e termina no governo federal, ainda tem os estados e municípios. Elas e as universidades não são de curto prazo, tudo isso dura muito mais que uma gestão, e dez anos não dá para pensar numa educação fora do sistema educacional, que foi uma tônica do discurso do ministro. O que pode ser o sistema é todo um debate.
CCLF: E que debate é esse?
LR: Existem diferentes correntes que estão em debate, como a questão do financiamento. Como as partes participam disso? A avaliação é outro ponto difícil, é outro debate imenso, por exemplo, no governo Lula e Dilma se discutiu muito as conferências nacionais. O que seria o sistema nacional? O que envolve? Um dos debates era sobre a avaliação, hoje existem várias de curto prazo, com as mais conhecidas sendo o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade).
Qual a concepção de avaliação do MEC? Esse vai ser um ponto de intenso debate do governo. Na época de Fernando Haddad [ex-ministro da Educação no governo Lula], o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) foi um debate muito intenso. Basicamente o Ideb mede a aprendizagem dos estudantes e acaba reproduzindo uma série de outros modelos de educação que existem no mundo, como o programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), indicador internacional, mas o que havia como contraproposta é que a educação não pode ser medida apenas pela aprendizagem, é preciso também ver a rede escolar de classe média alta, a escola da favela. Como considera na avaliação as condições das escolas? O que oferecem? Infraestrutura? Condições dos professores, salários, formação, supervisão? Coordenação pedagógica, equipe técnica, acompanhamento psicossocial? Merenda, biblioteca, laboratório de informática?
Outro ponto de debate é a questão socioeducacional dos estudantes e professores. Formação, especialização, acesso à cultura. Muitos profissionais são mal remunerados, muitas escolas não têm os recursos que os professores precisam. Então a avaliação não pode só se basear na questão da aprendizagem do sujeito.
O setor da esquerda queria o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) com uma avaliação sistêmica, incluindo a avaliação entre os entes, governo, estado e município, e entender qual o apoio que é dado a cada um.
CCLF: Quais são as problemáticas do envolvimento do setor privado com a pasta da educação?
LR: O novo governo aparenta ter uma relação muito forte com as organizações e fundações empresariais, e elas estão muito envolvidas com um modelo de sistema de avaliação baseado na meritocracia e acaba não avaliando o todo da aprendizagem.
Nisso, as redes começam a se adaptar para maquiar os resultados e existe uma preparação para as avaliações, por exemplo num determinado mês vai ter uma professora que vai fazer reforço escolar baseado naquela avaliação.
Infelizmente o sistema de avaliação baseado na aprendizagem acaba fortalecendo a meritocracia, com os que estão mais capazes para responder àquele tipo de teste se saindo melhor. Essa é uma questão que vai ao encontro da defesa do direito à diversidade, como as escolas trabalham com a diversidade. Veja as escolas quilombolas e indígenas, que entendem a natureza, a ancestralidade e as coloque nesse tipo de avaliação com escolas de uma grande capital, assim você não está medindo o intelecto da pessoa, mas uniformizando os estudantes e isso é muito perigoso, principalmente se entendermos as múltiplas desigualdades no país.
Na educação infantil você sabe que as crianças têm diversos tipos de inteligência, e ela vai sendo podada ao ponto que ela tem que se adaptar àquelas inteligências que a escola é capaz de estimular e medir.
CCLF: A presença do setor privado deve influenciar também no que falamos mais cedo sobre financiamento?
LR: Com relação ao financiamento foram faladas algumas coisas preocupantes, uma das coisas do Fundeb é o Valor Aluno Ano por Resultados (VAAR), que seria um valor por aluno diferenciado de acordo com os municípios, considerando um município de um estado pobre que tem um valor alto e o contrário, como Ipojuca que tem um renda alta por conta do Porto de Suape e tem uma população pequena. O VAAR foi criado para lidar com as diferenças e desigualdade entre os municípios e é um campo que não está muito regulamentado como vai se calcular esse VAAR. Esse é um desafio para o novo MEC.
Foi dito que esse VAAR fosse feito de acordo com o desempenho, quem tiver melhor desempenho ganha mais. Nos municípios de maneira geral, principalmente em contexto de crise, uma das coisa que mais reflete é o aluguel, pois as pessoas não conseguem pagar e o financiamento da educação tem muito a ver com a economia do país. Com a informalidade nos serviços faz com que se pague menos imposto nos serviços, então condicionar o recebimento de um recurso a mais por desempenho é uma forma de manutenção da desigualdade.
Uma coisa é avaliar e premiar os professores de acordo com o desempenho dos estudantes. Mas você vai considerar a avaliação em cima em quem tem nota maior ou de quem progrediu mais?
Uma das coisas mais sensíveis é como as escolas mais vulneráveis terão aula, as comunidades rurais, as escolas dentro de favelas com alto índice de violência. A avaliação não pode ser a mesma. Para avaliar o desempenho do aluno tem que perceber onde ele estava e até onde ele chegou, não só o resultado final. É a história da equidade, a analogia do banquinho. Tem que oferecer condições diferenciadas. Se uma escola sai da nota dois para quatro ela avançou o dobro, diferente de uma escola que estava com quatro e meio e foi para cinco.
Ainda no campo do financiamento, um destaque positivo para Camilo, em obediência com a Constituição, foi o reajuste no piso dos professores, o que não estava acontecendo, no auge da pandemia, por exemplo, houve casos em que se parou de contar o tempo de serviço durante aquele período. No entanto, está tendo uma reação muito forte dos municípios que apoiam o bolsonarismo.
CCLF: Na campanha eleitoral, Lula falou muito sobre o Ensino Superior. Como o MEC tem se mobilizado em relação às universidades?
LR: Outra coisa que nos preocupa, é que se falou muito pouco do papel das universidades, do investimento e da instituição no campo da pesquisa e ensino. Pensando não só na formação, mas na pós-graduação, houve um desmonte muito grande no governo Bolsonaro com a produção e pesquisa científica.
O financiamento privado, que é o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), é uma questão muito complexa, pois acaba dando espaço para o financiamento de bolsas em instituições privadas. O setor privado cresceu muito com esse tipo de projeto nos governos de Lula e Dilma e isso nos preocupa porque você vai investir neste setor sem ter uma avaliação tão criteriosa.
É notório que muitas universidades contratam professores doutores até o Enade e depois os demitem por serem mais caros. Foi uma coisa muito estimulada com uma avaliação sem critérios técnicos e esse setor acaba disputando com a universidade pública, e retoma um discurso elitista de que a universidade pública é para poucos.
CCLF: Conseguimos entender que será um governo extremamente difícil do ponto de vista de ter que encarar grandes retrocessos em todos os setores da sociedade, e no que diz respeito ao MEC as dificuldades também são numerosas e complexas. Na sua visão, qual o grande desafio que o Ministério da Educação tem pela frente?
LR: O grande desafio é enfrentar o desmonte que foi feito no MEC. O Ministério tem um papel importantíssimo e teve gestões terríveis, de grande ignorância, com muita corrupção – basta ver o caso dos pastores recebendo para construir igrejas.
O papel do MEC foi esvaziado, só reconstruir isso é um desafio imenso. E a gente tem que entender o que podemos fazer para que a educação não enfrente mais isso. Vi num debate muito interessante que dizia que nós ganhamos a eleição, mas não vencemos a extrema-direita e ela está aí, forte, aprontando todas.
A gente ainda não sabe com quem dialogar, é um espaço de disputa, não é só o Lula que está lá. Ainda é difícil saber, mas é importante monitorar e ainda está começando, são poucos dias de governo com um atentado no meio.