No mês de Julho, uma época em que as vozes das mulheres negras ressoam com ainda mais força em virtude da mobilização em torno do Julho das Pretas, o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) potencializa seu compromisso em celebrar, honrar e exaltar as conquistas e contribuições das mulheres afrodescendentes na nossa sociedade. Em meio a um cenário onde histórias foram silenciadas e talentos foram sistematicamente subestimados, a força e a resiliência das mulheres negras na arte emergem como uma fonte inesgotável de inspiração e transformação.

Na literatura brasileira, assim como em outras linguagens, os homens brancos escritores, mulheres brancas escritoras e personagens, narradores e protagonistas embranquecidos, deram o tom ao que chegava nos livros. Pesquisas acadêmicas apontam o caminho do enegrecimento da literatura e Conceição Evaristo e Carolina de Jesus sempre são autoras referenciadas no percurso desta conquista.

Uma escrita diaspórica surge para romper com a hegemonia e nos aproximar das verdadeiras histórias. Conectar ao ancestral, à cultura e herança de povos originários, africanos, tradicionais. É uma das formas de promover o fortalecimento da identidade negra, valorizando as experiências individuais e coletivas e reafirmando a importância do legado cultural dessas comunidades.

Odailta Alves¹ é uma dessas escritoras que coloca na mesa o que é de direito do povo negro, especialmente das mulheres negras. Aproveitamos a conversa abaixo para homenagear essas artistas que, com suas palavras, movimentos e expressões, pintam um panorama cultural contra hegemônico, decolonial e empoderador. Enaltecemos as artes de mulheres negras e reconhecemos a sua imensurável importância na construção de uma sociedade antirracista e antissexista. Confira a entrevista completa:

Centro de Cultura Luiz Freire: Odalita, em uma entrevista concedida à Diario de Pernambuco TV, você menciona que foi a primeira pessoa da família a aprender a ler e que se tornar escritora já é uma forma de subverter um sistema racista. Como é possível subverter um sistema que não apenas promove o genocídio dos corpos negros, mas também comete o epistemicídio dos saberes e intelectuais afro-brasileiros?

Odailta Alves: Infelizmente, não há uma receita pronta para isso, não é mesmo? Entretanto, percebemos que a subversão ocorre quando não nos conformamos com as expectativas que criam sobre nós, baseadas na perspectiva do fracasso e da subalternidade. Superamos esse sistema ao construirmos outras narrativas, ocupando espaços que a sociedade jamais imaginou, como na literatura, na escrita, na arte e na academia. Conseguimos romper com as barreiras impostas por um sistema que não foi projetado para acolher filhas, netas e bisnetas de pessoas analfabetas, e assim, nos unindo ao nosso povo, nos aquilombando, buscamos viver de forma saudável, reivindicando o direito de amar e de viver com dignidade, embora muitas vezes a sociedade nos negue esse mínimo de respeito. No meu caso, subverto e subverti ao quebrar o ciclo de gerações que sempre trabalharam nas cozinhas dos outros, ainda que reconhecendo a importância dessas atividades. É a capacidade de ocupar outros espaços e de servir de inspiração sob uma nova perspectiva para as nossas comunidades que nos possibilita subverter esse sistema.

Centro de Cultura Luiz Freire: Ao longo da história, a literatura hegemônica tem retratado a figura da mulher negra como um indivíduo que está a serviço de algo ou de alguém, geralmente de forma hipersexualizada. Qual é o papel do projeto Mala Preta nessa escrita/reescrita literária?

Odailta Alves: O projeto Mala Preta surge a partir de uma necessidade de aquilombamento feminino. Consegui um edital para levar meus livros ao festival “A Letra e A Voz”, aqui no Recife, e pensei: “Não, não estamos sozinhas”. Então, entrei em contato com outras mulheres negras que escrevem, perguntando se gostariam de levar ou enviar suas obras. Assim, as pessoas foram enviando suas contribuições e eu fui preenchendo uma mala preta, compreendendo que aquilo era muito mais do que algo pontual; era um projeto, uma mala de poder, poder preto, de letras, narrativas e versos. A Mala Preta surge como um projeto que busca quebrar o imaginário estereotipado acerca das mulheres negras. A sociedade tende a nos relegar a espaços limitados, como trabalhos braçais, locais subalternizados e hipersexualizados, ignorando nossa sensibilidade e intelectualidade. Mas a Mala Preta diz “não!” Afirmamos que, sim, estamos aqui em Pernambuco, e muitas vezes, quando uma mulher negra consegue ocupar esse espaço, surgem questões regionais que dificultam ainda mais o acesso a outros espaços, especialmente fora do eixo Sul-Sudeste.

É por isso que nos aquilombamos através do projeto Mala Preta, utilizando-o como uma estratégia para levar nossas escritas, nossas vivências, a diferentes lugares dentro do estado de Pernambuco e também fora dele. Agora, estamos indo para o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) também.

Centro de Cultura Luiz Freire: “Que meu passado/ Não me plante na escravidão/ E nunca esqueçam/ Que fui escravizada/ Mas escrava: NÃO”. Clamor Negro, de Odailta, é uma obra repleta de camadas tanto em seu conteúdo, denunciando violações e evocando a potência da negritude, quanto em sua forma, que se inicia como poema, se transforma em teatro e incorpora dança e música. Quais são os percursos percorridos pelo Clamor Negro?

Odailta Alves: O Clamor Negro teve um percurso curto em termos de tempo, pois surgiu em 2016 como um livreto independente. Digitado e impresso por mim, saí recitando por aí e vendendo minha obra. Hoje, o livro conta com mais de 3.200 exemplares vendidos de forma independente. Considerando que, segundo a sociedade, as pessoas não têm interesse em ler, fico muito orgulhosa de ter alcançado essa marca sem o apoio de editoras, que, apesar de importantes, nem sempre são tão fortalecedoras. Financeiramente, o relacionamento entre editoras e escritores muitas vezes é caótico.

Em 2018, fiz a adaptação do livro, incluindo outros poemas meus e de duas escritoras negras, para criar o monólogo Clamor Negro, que estreou em 2017 no Teatro O Poste Soluções Luminosas. Desde então, foram mais de 50 apresentações para mais de cinco mil espectadores. Levamos o espetáculo para diversos lugares em Pernambuco, incluindo o agreste, o sertão e a zona da mata, além de cidades na Paraíba e em Ilhéus, na Bahia. Recebemos o 3º Prêmio Roberto de França Pernalonga de Teatro no ano passado, na categoria melhor monólogo do estado. Além disso, conquistamos o Funcultura para realizar atividades e levar o teatro para algumas escolas do estado, contando com uma trilha sonora autoral das talentosas Isaar e Darana, uma dançarina que também contribui para a performance teatral.

O Clamor Negro agora seguirá para o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), no agreste, e continuará voando, pois ainda há muito a ser explorado e muitos diálogos a serem estabelecidos a partir desse espetáculo.

Centro de Cultura Luiz Freire: Escritora, atriz, educadora. Outra descrição que encontramos de Odailta Alves é “ativista dos Direitos Humanos”. Como se dá esse entrecruzamento entre arte e política?

Odailta Alves: Esse entrecruzamento entre arte e política é fundamental para mim. Eu utilizo a arte como uma forma de militância. Meu corpo é político, pois é um corpo negro, sapatão e periférico, que não segue as normas cristãs. Ele emerge das margens para lutar e se colocar no centro da sociedade. Todo esse processo de militância e luta pelos Direitos Humanos visa nos reconectar com nossa humanidade, que a sociedade constantemente tenta negar. Atuar pelos Direitos Humanos significa lutar pelo direito à vida, não apenas a minha, mas a de meus filhos, familiares, vizinhos, estudantes e toda a comunidade negra e periférica. Essa luta, esse “artivismo”, é levado às mais diversas esferas, inclusive nas instituições, já que sou concursada na Secretaria de Educação e atuei na Gerência de Direitos Humanos. Atualmente, estou em licença para fazer meu doutorado.

Através da arte, especialmente da literatura e do teatro, consigo alcançar espaços que só a arte é capaz de tocar. A sensibilidade e a capacidade de fazer com que alguém se coloque no lugar do outro, ao sentir a arte, são elementos poderosos. Utilizo essas formas artísticas para refletir sobre as diferentes humanidades que devemos acolher e abraçar. Não são apenas as humanidades hegemônicas que representam a sociedade, mas sim as de todas as identidades marginalizadas, como as mulheres negras, as mulheres trans, as mulheres indígenas e as mulheres com deficiência. Enfrentamos projetos genocidas que não apenas matam fisicamente, mas também exterminam identidades, história e conhecimentos ancestrais. Desse modo, precisamos desconstruir para reconstruir e mostrar nossas potências, e a arte se torna uma poderosa arma nesse processo.

Centro de Cultura Luiz Freire: Quais são as mulheres negras que te inspiram no caminho da poesia?

Odailta Alves: No caminho da poesia, há uma infinidade de mulheres que me inspiram. Desde as mais antigas, como Inaldete Pinheiro, aqui em Pernambuco, até escritoras como Conceição Evaristo, Miriam Alves, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Auta de Souza.

Também me inspiro em mulheres mais jovens, como as talentosas do SLAM da Minas, como Bell Puã, Bione, Patrícia Naia, Tamires Almeida, Amanda Timóteo e Priscila. Há muitas escritoras incríveis aqui em Pernambuco e em todo o Brasil, é fascinante ver a diversidade e a qualidade das obras produzidas. Cristiane Sobral é uma escritora maravilhosa do Rio de Janeiro que atualmente mora em Brasília. Temos mulheres trans como Bixarte, que se destacam na poesia e na música. Outras como Sofia Lilian e Dalma Luíse escrevem academicamente com grande poesia. Mulheres negras, mulheres negras trans, mulheres negras lésbicas, como Manu Monteiro, de Caruaru, e Francisca Araújo, do sertão, também são fontes de inspiração. É impressionante a potência e a diversidade das mulheres negras escrevendo em Pernambuco e em diferentes partes do Brasil, e todas elas me inspiram profundamente. Alimentar-se da escrita de nossas irmãs é algo verdadeiramente inspirador.

 

¹Odailta Alves (1979), mulher negra, lésbica. Escritora, educadora, atriz e ativista dos Direitos Humanos, com ênfase em práticas antirracistas. Nasceu na favela de Santo Amaro (Recife/PE). É doutoranda em Linguística na UFPE e é concursada na Secretaria de Educação de PE, na qual atuou com formação antirracista. Também  é concursada na Secretaria de Educação do Recife. É escritora independente, com  7 livros publicados (4 de poemas e 3 de contos): Clamor Negro (2016 – com mais de 3.200 exemplares vendidos), Cativeiro de versos (2018), Letras Pretas (2019) e Nenhuma Palavra de Amor (2021) – POEMAS. E o Escrevivências – contos (2019), Pretos Prazeres – contos eróticos (2021) e Sapatão em Prosa e verso (2022). É vencedora nacional dos concursos de poesia Da Casa de Espanha (2016) e do Elas por Elas (2019). Em 2022, ganhou o prêmio Penalonga de Teatro de PE, com o seu monólogo Clamor Negro.

 

Foto: Reprodução das redes sociais/ Cedida pela autora