Sempre é tempo de pensar e debater sobre a democracia brasileira. A democracia que temos e a que queremos. O dia 25 de outubro é uma data oportuna para jogar luz sobre esse tema e destacar as violências cometidas pela ditadura civil-militar (1964-1985) que deixaram muitas feridas abertas, e que não podemos permitir que sejam escondidas.
Depois de seis anos com a democracia na berlinda, hoje temos um novo governo federal que caminha mais próximo da Constituição Federal de 1988 e dos Direitos Humanos. Contudo, figuras públicas e grupos organizados continuam a atuar pela desestabilização do Estado Democrático de Direito, a exemplo da tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023.
É exercitando a reflexão sobre a democracia que conversamos com o professor, advogado e cientista político Manoel Moraes. Confira a entrevista:
Centro de Cultura Luiz Freire: Manoel, temos algumas datas que demarcam a luta pela democracia, como o Dia de Luta pela Democracia Brasileira (5 de outubro) e o Dia Internacional da Democracia (15 de setembro), mas há uma mobilização em torno do dia 25 de outubro. Por que essa data é tão emblemática?
Manoel Moraes: Essa data marca, infelizmente, a data da prisão de Vladimir Herzog, ou seja, quando ele foi livremente, espontaneamente, a partir de uma convocação, para o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo, na Rua Tutóia. Lá ele foi barbaramente torturado e assassinado.
Então, essa data marca essa passagem trágica da ditadura militar que matou um inocente, como tantos outros que foram assassinados e torturados pela repressão política. A data em si é uma política que chamamos de reparação e essas políticas de reparação são simbólicas mesmo. Você não vai mudar a realidade, o Herzog não voltará, mas ao mesmo tempo você cria o ponto do nunca mais: “eu nunca mais quero que um jornalista seja preso ou torturado por pensar diferente, por pensar a democracia”, “eu nunca mais quero que o Brasil vire uma ditadura”; então a gente reafirma a democracia como um valor a partir dessa data.
Centro de Cultura Luiz Freire: Passamos por um período em que se flertou muito com práticas autoritárias, práticas fascistas e ameaças aos profissionais do jornalismo. Dentro desse contexto, essa data acaba sendo mais simbólica?
Manoel Moraes: Há um simbolismo nela e é por isso que se quer tornar o dia 25 de outubro como o Dia da Defesa da Democracia; mas ela pode ser muito mais prática se a gente pensar em programas que falem sobre a democracia, se a gente imaginar que os professores podem aproveitar essa data para trabalhar esses conteúdos em sala de aula, sobre a importância da democracia representativa, porque, de fato, nós temos um problema no Brasil, que foi muito bem apresentado pelo historiador e cientista político Murilo de Carvalho, que é o modelo de uma República sem participação. Então a gente tem uma democracia alijada, uma democracia cujo racismo é estrutural, portanto, você tem uma sub-representação da população negra nos espaços de poder.
Eu não estou falando da democracia de forma etílica, estou falando da democracia que importa, é a democracia que efetivamente a gente divide poder. A democracia etílica, a democracia conceitual pode ser importante no campo das pesquisas acadêmicas, mas o que a sociedade precisa e reivindica – evidentemente, a partir dos Direitos Humanos – é a efetivação. É o que o filósofo Norberto Bobbio diz: “nós não precisamos mais de normas, nós precisamos de efetividade”. Então, a ideia de uma Democracia participativa é de fato garantir espaços compartilhados de poder.
Centro de Cultura Luiz Freire: Você acha que a população está a par sobre o que é a democracia? Ou está muito associada com as eleições que acontecem a cada dois anos?
Manoel Moraes: Essa pergunta é importante porque, veja que nós temos uma visão teórica da Escola de Frankfurt, por exemplo, na Teoria Crítica, que vai trabalhar isso de forma que a democracia não pode ser instrumental. Por isso que a gente trabalha a democracia constitucional, que pressupõe que você tenha dentro desse ambiente constitucional espaços não só de escuta e participação, mas também da proteção das minorias.
Veja que o Supremo Tribunal Federal (STF) sempre conduz as decisões na defesa das minorias, na defesa dos direitos fundamentais, e esses direitos fundamentais e essas minorias marcam a possibilidade de um novo momento no país, um momento em que nós possamos ter as políticas de cotas, mas de forma transitória. Evidente que quando eu falo isso eu não estou imaginando que a gente vai ter isso para daqui a dois anos, por exemplo, porque a situação é tão desigual que talvez dure muito mais tempo para que a gente possa diminuir essa distância. Mas eu tenho que ter isso como provisório, eu não posso trabalhar a ideia de que o racismo vai permanecer no Brasil, tenho que acreditar que a gente vai conseguir convencer, trabalhar e produzir novos sentidos sobre igualdade, gênero, diversidade, ao ponto que a sociedade se torne mais diversa e plural.
Centro de Cultura Luiz Freire: E tem como pensar em democracia apartada dos Direitos Humanos?
Manoel Moraes: A democracia é um conceito na Ciência Política vazio, um conceito que a gente chama vazio no sentido que você preenche. A democracia é um conceito que a gente dá conteúdo a ele, então eu posso ter a democracia participativa, a democracia popular, a democracia constitucional como acabei de falar… Então esse conteúdo depende muito do que eu, como pessoa, cidadão, pesquisador, sociedade, quero dar a ela. Nesse sentido, quando pensamos os tratados internacionais em Direitos Humanos, os pactos dos direitos civis, econômicos, sociais, há ali, a partir inclusive da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma defesa da Democracia representativa, participativa, republicana e constitucional. Esse é o grande projeto que está inserido no sistema ONU, tanto que os mecanismos, os grandes painéis, as grandes pesquisas que comparam a democracia no mundo passa pelo PNUD, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, por exemplo, como indicador para efetivar ou não as políticas públicas. A democracia nesse sentido é como se fosse parte integrante e necessária dos Direitos Humanos.
Centro de Cultura Luiz Freire: Estamos em um horizonte esperançoso para a democracia brasileira, Manoel?
Manoel Moraes: Eu acredito que a democracia brasileira tenha amadurecido. A gente viveu 21 anos de ditadura, saímos da ditadura, passamos por processo de movimentos sociais que fizeram uma potente construção no que foi a Constituinte, que foi um movimento muito rico. Isso deu como consequência uma Constituição extremamente larga, a maior Constituição da história do Brasil e que tem resistido a golpes de Estado e a uma série de barbaridades.
Mas nesse processo de amadurecimento, o que me faz pensar trazer esse diálogo aqui é, infelizmente, a demora. É muito demorado alguns avanços, e o que foi pior nesses últimos anos foi perceber o retrocesso, que é aquilo que a gente não imaginava ver no Brasil. A gente sempre pensava que estava avançando, mas evidentemente a gente sabe que isso é fato. A gente viu empiricamente isso, que a história não é linear, e por não ser linear é que eu preciso ter políticas de educação que reafirmem a democracia, porque ela pode efetivamente ser perdida a luz de qualquer populista, cesarista que, com apoio militar e de setores retrógrados e conservadores, podem efetivamente dar um golpe de Estado, como se tentou fazer no 8 de janeiro de 2023.
Manoel Moraes é professor de Direito da Universidade Católica de Pernambuco, advogado e cientista político. É titular da Cátedra Unesco/Unicap de Direitos Humanos Dom Helder Camara e da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Foto: Cátedra Unesco/Unicap de Direitos Humanos Dom Helder Camara