Foi há menos de 100 anos que as mulheres no Brasil passaram a ter a possibilidade de participar da vida política com o voto, mas não de maneira irrestrita. O Código Eleitoral de 1932 permitia que as que fossem casadas votassem somente com a autorização dos maridos. Se fossem solteiras ou viúvas, só poderiam votar se comprovassem renda própria. Com o passar do tempo e com as lutas sociais, a participação das mulheres foi se tornadando cada vez mais difícil de ser parada.

Nesta data que marca o Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil (24), o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) conversou com Priscila Lapa, professora, comentarista política e doutora em Ciência Política, para entender melhor o cenário das candidatas nas eleições municipais de 2024, e as causas e consequências da sub-representação das mulheres nos espaços de decisão.

 

Confira a entrevista: 

Centro de Cultura Luiz Freire: Nos últimos anos, tanto nas eleições municipais, estaduais e federal, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou aumento no número da participação das mulheres candidatas, eleitas e reeleitas. Contudo, o crescimento da participação ainda é tímido, visto que no universo do eleitorado, 53% é composto pelas mulheres, ao passo que as candidatas eleitas representaram 16% em 2020 e 18% em 2022. Ao olharmos para a realidade de Pernambuco, a porcentagem de mulheres que venceram o pleito eleitoral é ainda menor, com 15% nas duas últimas eleições. O cenário para a corrida eleitoral em 2024 sugere mudança nesse quadro? 

Priscila Lapa: Não imagino uma mudança no curto prazo. Há fatores culturais, de valores, de comportamentos que impactam e explicam essa baixa representação feminina. Mudar essas estruturas requer tempo, mudança de mentalidade por meio da educação e muita atuação das instituições para que as normas vigentes sejam cumpridas. Fenômenos como o das candidaturas laranja sinalizam que ainda estamos distantes de uma visão arraigada da presença feminina nos espaços de poder. Então, para as eleições de 2024, podemos esperar que a agenda da mulher esteja presente, mas não com resultados ainda tão efetivos.  

 

Centro de Cultura Luiz Freire: Em 2020, cerca de 47 mil homens e 9 mil mulheres foram eleitos/as vereadores e vereadoras em todo o país, com as mulheres negras correspondendo a pouco mais de 6% da vereança – algumas capitais do país as elegendo pela primeira vez na história, como em Curitiba, no Paraná, Vitória, no Espírito Santo, e Goiânia, em Goiás. Em Pernambuco é possível contar nos dedos de uma mão as vereadoras negras em cada município, e que não necessariamente estão envolvidas com as pautas antirracistas. Que leitura é possível ser feita para as eleições de 2024 sobre essa sub-representação? 

Priscila Lapa: Esse debate sobre a representação política é um dos mais latentes na literatura sobre a democracia e os sistemas políticos, porque a grande questão é até que ponto determinados segmentos sociais têm a legitimidade para representar exclusivamente, digamos assim, as demandas do seu grupo? Ou não, se poderia haver uma representação de interesses de determinado grupo por membros que não necessariamente guardam a mesma identidade? Em outras palavras, homens podem representas os interesses das mulheres e as mulheres poderiam também representar interesses de outros segmentos que não apenas as pautas de mulher. O fato é que dentro desse debate já se aprofundou a questão da identidade como um elemento fundamental dessa representação. É onde entra, por exemplo, a questão do lugar de fala, em que você, a partir da sua identidade, da sua capacidade de ter vivenciado, experenciado as questões dentro desse segmento, ser capaz de representar e pautar dentro da política questões dessa natureza. Então essa questão da representação feminina, e quando dá outros recortes, como o racial, torna-se uma questão fundamental porque apenas o indivíduo que vivenciou e experimentou aspectos ligados a essa questão racial, e junto a isso com a questão de gênero, que tem a legitimidade para trazer os temas que efetivamente importam para esse segmento da sociedade, até porque a gente está falando aqui da representação política do parlamento. 

Então quando você tem a sobreposição de sub-representações, nesse caso da questão feminina com a questão racial, você torna esse problema ainda mais efetivo porque você deixa de ter pautados os interesses legítimos e claros desse segmento da sociedade. 

É como se você estivesse deixando sem voz, sem a capacidade de fazer as suas proposições dentro do legislativo um segmento da sociedade que é extremamente representativo e que está presente, a maior parte das pessoas do país não são homens brancos, então isso já diz muita coisa. Então por qual motivo só podem ser decididas e tomadas medidas a partir da ótica dessas pessoas? A pluralidade é um aspecto essencial, crucial dentro da democracia, e essa sub-representação de mulheres e de negros nos espaços de poder é muito emblemática, do porquê que questões essenciais para você garantir equidade desse grupo social, para você garantir direitos desses indivíduos, não estão pautadas no parlamento pela ausência de vozes que possam trazer esses interesses como prioritários, para uma agenda de prioridades. 

 

Centro de Cultura Luiz Freire: Levantamento feito pela Marco Zero Conteúdo indica que Pernambuco, nas três eleições mais recentes para a prefeitura, não chegou a ter 100 mulheres candidatas ao cargo em cada pleito – em 2020, foram 99 candidatas. Estratégia política? Desinteresse das cúpulas dos partidos? Machismo? O que explica, ou nos ajuda a entender melhor, essa realidade? 

Priscila Lapa: Os dados são muito contundentes. A gente tem essa percepção visual nas candidaturas, no cotidiano da política e quando você vem para os dados, para registro da candidatura, para efetivamente aquilo que oficialmente se coloca em disputa a gente percebe claramente esse déficit de candidaturas femininas e principalmente de candidaturas competitivas. Não é à toa que existe essa movimentação do Tribunal Superior Eleitoral nos últimos anos para garantir a efetividade de recursos do fundo eleitoral, já que a gente agora tem o financiamento público de campanhas no Brasil, para que isso represente um investimento nessas candidaturas femininas para que elas possam ser tão competitivas ou mais competitivas até do que as candidaturas de homens, mas de fato os efeitos disso ainda não estão sendo colhidos. É um processo de mudança, um processo de construção e a gente está vivenciando isso, porque toda vez que a gente olha para esse fenômeno, uma forma didática da gente compreender que a política é impactada por processos sociais mais amplos, uma coisa reflete a outra. Movimentos da política transbordam para as relações sociais, da mesma forma que a estruturação de relações sociais também impacta diretamente na política. Quando você tem desigualdade, distribuição de papéis de maneira a sobrecarregar as mulheres na esfera privada e não as deixar, dotá-las de um papel significativo na esfera pública, isso se reflete na política também. 

Nos últimos anos a gente tem visto essa agenda começando a fazer parte da agenda da sociedade, as pessoas hoje cobram com um pouco mais de veemência que os partidos, que as lideranças políticas considerem essas candidaturas femininas. Tanto que a gente tem tido essas chapas compostas por uma vice mulher, muitas vezes trazendo muito mais como uma espécie de resposta à essa agenda que já é presente, mas que ainda não foi capaz de provocar mudanças mais significativas na proposição, porque o problema não está apenas nas candidaturas, as candidaturas são a ponta de um iceberg. Antes que se lance uma chapa tem um processo político de construção de liderança, de protagonismo dentro dos partidos, de ocupação dos cargos de liderança no partido, que raramente tem espaço para as mulheres, raramente as mulheres estão predominando nessas esferas. Então se as mulheres não comandam os partidos, não comandam os diretórios, não participam de forma igualitária do processo de tomada de decisão dentro do partido, que é onde os recursos vão ser distribuídos, as alianças vão ser firmadas, você não pode esperar que as candidaturas sejam mais numerosas com a presença feminina. Então, com certeza, esse conjunto de variáveis culturais, políticas de distribuição de recursos políticos explicam essa sub-representação e essa diminuta presença de mulheres nas chapas, em Pernambuco e no Brasil como um todo. 

 

Centro de Cultura Luiz Freire: E quais são as consequências dessa sub-representação de mulheres, mulheres negras e mulheres trans, dentre outros grupos sociais vulnerabilizados, na política-partidária-eleitoral? 

Priscila Lapa: A falta de você trazer para a pauta da política questões que são muito próprias de determinados grupos sociais e que precisam ser vistas e que precisam ser ouvidas. A política legislativa orçamentária é toda feita com base em prioridades. Você pode ir para a democracia mais avançada do mundo ou ficar no Brasil, a quantidade de recursos para resolver as questões e as demandas da sociedade vai ser sempre limitada diante das necessidades, que a cada dia se tornam mais complexas. Se você não tem representantes dos grupos que possam pautar o poder legislativo e trazer isso para uma lista de prioridades você não tem essa representação desses interesses efetivamente constituída. Um exemplo recente disso é o debate sobre a dignidade menstrual. Quantos anos se passaram no Brasil para que entrasse em pauta? E ele entrou em pauta pelas mãos de mulheres, porque durante muitos anos, e como ainda o é hoje, você tem um parlamento composto por maioria de homens brancos que não tem essa percepção da sociedade, dessa necessidade. Precisou que o tema da mulher tivesse latente na sociedade, que você estivesse conseguindo traçar alguns espaços para a atuação política da mulher, para que uma mulher, entendendo a necessidade disso e do que se trata ter dignidade menstrual, para conseguir pautar esse tema no congresso e garantir recursos públicos para que o Estado cumpra o seu papel da distribuição dos insumos necessários para que essa dignidade se concretize. Isso é um exemplo de como a ausência de representação pode ocasionar a não priorização de pautas que são extremamente relevantes quando você dá o recorte dos segmentos sociais. Nem toda política é para todo segmento. 

 

Centro de Cultura Luiz Freire: Quais caminhos são possíveis de serem criados e/ou trilhados para uma efetiva presença das mulheres nos espaços de decisão? As Políticas Públicas atuais não são efetivadas ou se mostram insuficientes? 

Priscila Lapa: Para a gente melhorar esse processo, a gente precisa fazer um investimento em formação, em educação política, porque só com isso a gente vai conseguir ter também uma transformação dessa distribuição de papéis na sociedade. Enquanto tiver no inconsciente coletivo predominando a percepção de que a economia do cuidado, a esfera privada é o lugar onde a mulher deve atuar prioritariamente, você não avança no sentido de conseguir dar à mulher protagonismo nos espaços de poder, sejam eles no mercado de trabalho, nas empresas ou na própria política, então têm uma questão aí de revisão da forma de entender os papéis na sociedade. Isso é educação, é cultura, é cultura política e passa também por um processo de maior apropriação do cidadão sobre o funcionamento e a dinâmica da gestão pública, do processo eleitoral, da prestação de contas dos partidos, e nós hoje como cidadãos passamos muito longe de saber se os partidos estão cumprindo aquilo que a legislação determina para aprimorar e ampliar a participação política feminina, por exemplo. Então a gente precisa desse investimento, e por fim a gente precisa sim aperfeiçoar as nossas instituições, os partidos, ter um maior controle social sobre os espaços de distribuição de poder dentro dos partidos e levar isso para outras esferas. Para que tudo isso seja efetivamente cumprido é preciso de mais transparência, accountability, prestação de contas, aí você começa a criar um círculo virtuoso em que essas questões se tornam pacificadas. 

 

Centro de Cultura Luiz Freire: E para que possamos acompanhar mais atentamente o trabalho das mulheres na política ou com formação política, você pode partilhar conosco sugestões de iniciativas, veículos ou pesquisas?  

Hoje, o próprio Tribunal Superior Eleitoral, o Ministério Público, várias instituições da sociedade civil e a academia começam a mapear e compreender melhor como é que se dá a atuação política da mulher para fortalecer esse ciclo de mais mulheres na política, com mais entregas, com mais resultados. Tem estudos sobre resultado de políticas públicas em municípios governados por mulheres, do Instituto Alziras, por exemplo. Há uma série hoje de conhecimentos difundidos na sociedade sobre esse papel da mulher na política, e os resultados de uma maior presença da mulher nas esferas de poder, que podem pautar e respaldar essa narrativa da importância de se ter mais mecanismos, ampliar ainda mais e gerar um pouco melhor oportunidades de equidade para que essas questões sejam definitivamente resolvidas em nossa sociedade. 

 

 

Priscila Lapa é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (2016), também é mestre em Ciência Política e bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela mesma universidade. Professora na Faculdade Grau e Analista Técnica no SEBRAE-PE, atuando na área de Políticas Públicas, desde 2014. Palestrante e debatedora em temas como eleições, gestão pública e Poder Legislativo. Comentarista de política em programas de rádio e televisão e articulista do Jornal do Commercio (Recife-PE). 

 

Foto: Nádia Tude/ Divulgação