São Paulo, 23 de novembro de 2022.

Ao Exmo. Vice-Presidente eleito e Coordenador da Equipe de Transição do Governo Sr. Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho

Aos/às integrantes dos Grupos Técnicos da Transição em Relações Exteriores, Direitos Humanos, Mulheres, Educação e Igualdade Racial

Ref.: Retirada do Brasil da Declaração de Consenso de Genebra.

Prezado,

As organizações que assinam o presente documento vêm, respeitosamente, solicitar ao governo eleito que retire a adesão do Brasil da “Declaração de Consenso de Genebra”, para retomar os compromissos internacionais do Estado brasileiro com a igualdade de gênero e os direitos sexuais e reprodutivos.

Criada em 2020, a Declaração representa uma aliança internacional que defende um conceito restritivo de família, restringe os direitos reprodutivos, sendo contrária ao direito ao aborto, inclusive nos casos legais. É composta somente por 36 países, dentre eles Estados ultraconservadores reconhecidos por violarem os direitos das mulheres e da população LGBTI. Os Estados Unidos da América, à época governados pelo ex-presidente Donald Trump, e o Brasil, governado por Jair Bolsonaro, lideraram essa iniciativa.

Embora não tenha a força de tratados internacionais, a Declaração mancha a trajetória da política externa brasileira em matéria de direitos humanos. Com base nela, o governo Bolsonaro legitimou uma postura voltada a restringir menções a direitos sexuais e reprodutivos em documentos discutidos em fóruns multilaterais, marcando o desalinhamento do Brasil com compromissos históricos assumidos pelo Estado brasileiro de proteção e promoção desses direitos.

Em 2019, o Brasil se absteve na votação de trechos de uma resolução debatida no Conselho Econômico e Social da ONU que visava garantir saúde sexual e reprodutiva a pessoas afetadas por crises humanitárias1. Já em 2020, o governo brasileiro novamente se absteve em votação de normativa sobre discriminação de gênero no Conselho de Direitos Humanos da ONU, exigindo a retirada de informações do texto, mais especificamente no trecho sobre acesso a métodos contraceptivos2.

Essa postura lamentável se repetiu em 2021, quando o governo se recusou a participar de uma Declaração elaborada no âmbito do Conselho no Dia Internacional da Mulher, que apelava aos Estados para incluírem serviços de saúde sexual e reprodutiva nos planos de enfrentamento à pandemia3; e em 2022, quando novamente o governo tentou vetar outra resolução do Conselho com disposições no mesmo sentido4.

Como última cartada, atropelando o processo de transição política, durante a Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU realizada na semana passada, o governo rejeitou 10 recomendações feitas por outros países em matéria de direitos sexuais, reprodutivos e gênero.

Internamente, a política externa brasileira também surtiu efeitos deletérios, com destaque para os ataques ao direito de interrupção da gravidez nas situações previstas em Lei. Em 2020, em um episódio deplorável, houve denúncias de que a ex-Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos à época, Damares Alves, teria atuado para impedir o aborto legal de uma menina de 11 anos, estuprada por seu próprio tio. Devido ao vazamento de dados da menina, inclusive sobre a sua localização, ela e sua família foram hostilizadas e ameaçadas, estando hoje sob tutela do programa de proteção à testemunha5.

Em seguida, o Ministério da Saúde editou uma Portaria que determinava a obrigação de que médicos(as) e profissionais da saúde notificassem à polícia quando da procura do serviço de aborto legal, mudando o foco da proteção e assistência para a criminalização e repressão. Além disso, a Portaria previa que médicos(as) informassem à pessoa interessada sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia6. Pressionado pela discussão da ADPF 737 pelo Supremo Tribunal Federal, que contesta tais medidas, o Ministério da Saúde publicou uma nova Portaria, ainda em vigência, modificando alguns pontos, mas mantendo dispositivos ilegais que constrangem vítimas de violência sexual7.

A postura internacional do Brasil nos últimos quatro anos, cuja posição se consolidou em ativa participação no Consenso de Genebra, vai na contramão da história diplomática do país na defesa da igualdade de gênero e dos direitos sexuais e reprodutivos. Desde a década de 1990, o Estado brasileiro tem se comprometido, em espaços multilaterais, com normas que recomendam a prevenção de abortos inseguros, a revisão das leis punitivas e o pleno respeito pelo direito das mulheres à autonomia sexual e reprodutiva. São exemplos a participação do Brasil nos programas de ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), a IV Conferência Mundial de Mulheres (Pequim, 1995) e o Consenso de Montevidéu (Cepal, 2013). O governo eleito tem o papel fundamental de retomar a coerência das políticas externas do país, com relação a essas matérias.

A saída do Brasil do Consenso de Genebra representa também o compromisso do país em romper com a reprodução de violências raciais, pois registra-se, nos últimos 4 anos, inúmeras violações de direitos da população negra e indígena, inclusive no tocante ao direito à saúde reprodutiva e sexual.

As violências institucionais produzidas pelas más condições de atendimento à saúde incidem, mais severamente, na vida de mulheres e meninas negras e indígenas, em particular no campo da atenção à saúde e dos direitos reprodutivos. Neste cenário de desigualdades, é fundamental o compromisso ético e político do Estado brasileiro com o desenvolvimento de políticas de cuidado livres de coerções, discriminações e violências de qualquer ordem.

No que diz respeito à família, como sublinha a filósofa Sueli Carneiro (CARNEIRO, 2011)8, historicamente, as mulheres negras foram responsáveis por prover e cuidar de suas sobrevivências e de suas famílias. Contudo, por efeito do racismo que estigmatiza as famílias negras no contexto brasileiro, essas mulheres não são atendidas por políticas de atenção e cuidado. Este é o
modelo de família brasileira que deve ser priorizado pelos compromissos do Estado brasileiro na promoção de direitos humanos.

No primeiro mês de seu mandato, o presidente estadunidense Joe Biden saiu oficialmente do Consenso de Genebra, seguido, em 2022, por Gustavo Petro, presidente da Colômbia. Em comunicado oficial de retirada do país da aliança, o Ministério de Relações Exteriores registrou que “o governo da Colômbia reconhece, respeita e protege os direitos sexuais e reprodutivos e a saúde sexual e reprodutiva das mulheres e meninas” indicando ainda que o governo “tem em conta que em diferentes sistemas culturais, sociais e políticos existem diversas formas de família”9. Importante frisar que com a saída dos Estados Unidos da América do acordo, o Brasil se tornou sua principal liderança, mantendo inclusive a secretaria de articulação do Consenso sob responsabilidade do governo de Jair Bolsonaro.

O anúncio da saída do país dessa aliança ultraconservadora significaria a recuperação da posição de respeito do Brasil no cenário internacional. Abandonar o Consenso indicaria a retomada da condução da nossa política externa com base em princípios e normas internacionais. Para a comunidade mundial, a permanência brasileira pode sinalizar negativamente a quebra de compromissos assumidos desde os anos 1990.

Portanto, a saída do Brasil dessa articulação com governos ultraconservadores é uma medida urgente no sentido de conter os efeitos negativos dos ataques da extrema direita global às políticas de igualdade de gênero e vai fortalecer o compromisso internacional do país com os direitos das meninas, mulheres e da população LGBTI, pavimentando a retomada da histórica liderança brasileira na promoção de agendas multilaterais de direitos humanos.

Assim, as organizações sociais, abaixo subscritas, vêm solicitar ao governo eleito que retire a assinatura do Brasil do Consenso de Genebra.

Agradecemos vossa consideração e esperamos trabalhar conjuntamente por um Brasil que respeite e garanta os direitos humanos.

Subscrevem:
1. ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Intersexos
2. Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva
3. Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa e Informação
4. AJD – Associação Juízes para a Democracia
5. Anis – Instituto de Bioética
6. ANPED – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação
7. ANPEPP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia
8. ANPUH-BRASIL – Associação Nacional de História
9. ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais
10. Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB
11. Articulação para o monitoramento dos DH no Brasil
12. ARTIGO 19 Brasil e América do Sul
13. Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
14. Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM)
15. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS)
16. Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC)
17. Associação Brasileira de ONGs (ABONG)
18. Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de
Relações Públicas – Abrapcorp
19. Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) – ABPN
20. Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC)
21. Associação Brasileira de Professores de Italiano (ABPI)
22. Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho – SBPOT
23. Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP)
24. Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO)
25. Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA)
26. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
27. Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF)
28. Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE)
29. Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e
Regional (ANPUR)
30. Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação (COMPOS)
31. Bloco A
32. Campanha Nacional pelo Direito à Educação
33. Campanha Nem Presa Nem Morta
34. Casa Sueli Carneiro
35. Católicas pelo Direito de Decidir
36. Central Única dos Trabalhadores – CUT
37. Centro de Cultura Luiz Freire
38. CENDHEC – Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social
39. Centro Interdisciplinar de Estudos de Gênero da Unilab – CIEG DANDARA
40. CEPIA – Cidadania Estudo Pesquisa Informação Ação
41. CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria
42. Cidade Escola Aprendiz
43. CLAM – Centro Latino Americano de Sexualidade e Direitos Humanos – UERJ
44. Clínica Cravinas – Prática Jurídica em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e
Reprodutivos da Universidade de Brasília
45. Coalizão Negra por Direitos
46. Coletivo 4D
47. Coletivo Adelaides – Feminismos e Saúde
48. Coletivo Feminista Peitamos
49. Coletivo Frente Popular de Mulheres contra o Feminicídio do Piauí
50. Coletivo Popular de Advocacia Piauiense
51. Comitê Latino Americano e do Caribe pelos Direitos da Mulher (CLADEM Brasil)
52. Conectas Direitos Humanos
53. Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE
54. CRIOLA
55. Grupo Curumim – Gestação e Parto
56. FMNDF – Frente de Mulheres Negras do Distrito Federal
57. Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto
58. Fórum das Ciências Humanas, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes
(FCHSSALLA)
59. GELEDÈS – Instituto da Mulher Negra
60. GEPSID – Grupo de Estudos e Pesquisas Subjetividades e Instituições em Dobras
da UERJ
61. GREFAC – Grupo de Estudos sobre Família Contemporânea (UFRJ e UERJ)
62. Grupo Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performance nas
Comunicações e nas Artes (AlterGen)
63. Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de
Estudos Avançados (IEA-USP)
64. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
65. Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
66. Instituto Alziras
67. Instituto de Estudos de Gênero (IEG)
68. Instituto de Referência Negra Peregum
69. Instituto Marielle Franco
70. IROHIN – Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro Brasileira
71. ISER – Instituto de Estudos da Religião
72. Justiça Global
73. LabGen – Laboratório de Estudos de Gênero e Interseccionalidade da UFF
74. Laboratório Filosofias do Tempo do Agora (UFRJ)
75. LABUTA – UFRRJ
76. Marcha Mundial de Mulheres
77. Neseg – Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero da UFRJ
78. NIMMIN – Núcleo Interdisciplinar Mulheres, Movimentos, Instituições e
Normatividades da UERJ
79. Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da Universidade Federal de Minas
Gerais
80. Núcleo de Estudos de Gênero (NEG) da UFPR
81. Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividades (Nigs)
82. Nuderg – Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de
Gênero da UERJ
83. NuSex – Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade da UFRJ
84. Observatório da Educação Ambiental Brasileira Rede OBSERVARE
85. Observatório de Sexualidade e Política (SPW)
86. Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil
87. Portal Catarinas
88. Projeto Diversidade na ECA
89. REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano
90. Rede de Mulheres Negras de Pernambuco
91. Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras
92. Rede Fluminense de Núcleos de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Feminismos
nas Ciências Sociais (REDEGEN)
93. Rede Médica pelo Direito de Decidir
94. Rede Não Cala USP
95. RFS – Rede Feminista de Saúde
96. SBEC – Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
97. SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia
98. Ser-Tão – Núcleo de Ensino, extensão e Pesquisa em Gênero e Sexualidade da
Universidade Federal de Goiás
99. Sempreviva Organização Feminista – SOF
100. Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE)
101. Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – SBMFC
102. Sociedade Brasileira de Sociologia
103. SOS Corpo
104. Terra de Direitos
105. Uneafro Brasil

 

8 CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.