As fortes chuvas que já duram um mês em Pernambuco revelam o nível da ausência de políticas públicas eficazes no trabalho preventivo em um estado que historicamente é vítima de enchentes e deslizamentos dos morros. Nesta terça (31), a atualização do governo do estado indica que o Grande Recife já conta com 100 pessoas mortas, 16 desaparecidas e cerca de 6 mil desabrigadas. De acordo com a Agência Pernambucana de Águas e Clima (APAC), a previsão é de que o volume de chuvas siga com intensidade moderada até a sexta-feira (3) e a Defesa Civil emitiu alerta de alto risco para deslizamentos.

Pernambuco e 14 municípios decretaram estado de emergência, são eles: Recife, Olinda, Paulista, Camaragibe, Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho, Goiana, Nazaré da Mata, Moreno, Paudalho, São José da Coroa Grande, Macaparana, Timbaúba e São Vicente Férrer. Apesar da Região Metropolitana do Recife (RMR) e da Zona da Mata estarem sofrendo com os volumes de chuva e precipitações muito acima da média, com acumulados por dia chegando a passar de 200 mm, invernos carregados de chuva não são novidades, aliás, acontecem todos os anos, e com a depredação da natureza por um capitalismo inconsequente a tendência é de que piore. A culpa não é da chuva.


Recife ocupa a 16ª posição do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) no ranking das cidades mais vulneráveis à mudança do clima no mundo.

Todos os anos as vítimas são as mesmas pessoas, aquelas que tem o direito a uma moradia digna negado, que são empurradas para as margens, para os morros, para a beira dos rios, para os aterros, e lá, são negligenciadas pelo Estado com a ausência de saneamento básico, calçamento e mitigação de risco. Resgatando a definição usada pelo ativista e liderança do movimento negro dos EUA, Benjamin Chavis, o Racismo Ambiental é:

“A discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais”.

 

Ano após ano são essas pessoas que perdem móveis, eletrodomésticos, roupas, casas, amigos, familiares, vizinhos. Todos os anos essas mesmas pessoas perdem vidas e parte de sua história. A culpa não é delas. Enquanto estado, Pernambuco é o 3º com maior incidência no Ranking do Saneamento 2022, carregando Jaboatão dos Guararapes e Recife dentre as 20 cidades com as piores notas, segundo o Instituto Trata Brasil. Paulo Câmara, governador desde 2015, constantemente é criticado pela ausência de políticas de planejamento urbano que atendam as necessidades da população. Construtoras e grandes empresários ditam a dinâmica das cidades, ignorando normas, planos e recomendações que auxiliam na estruturação de espaços urbanos seguros e acolhedores para todas as pessoas, levando em consideração Soluções baseadas na Natureza (SbN).

Nas entrevistas realizadas com pessoas que vivem nesses locais de extrema vulnerabilidade, as respostas são quase unânimes: “estamos aqui porque não foram entregues os habitacionais prometidos”. As dores causadas a essas populações que têm cor, território e classe social muito bem demarcadas, são dores infligidas propositalmente, não só por uma falta de olhar do poder público, mas por uma política que se sustenta em práticas de extermínio a essas populações. Por exemplo, no dia 05 de maio de 2021, por meio do decreto Nº 34.543, a Prefeitura do Recife retirou cinco milhões de reais da Requalificação dos Cursos de Água e destinou para a Comunicação. Estamos falando aqui de uma quantia milionária que iria para uma área de notória precariedade da capital pernambucana para um setor que não tem a mesma urgência – mesmo entendendo da importância da comunicação e da transparência – e que já tinha recurso destinado antes.

Em Olinda, cidade em que o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) está sediado, segundo informações divulgadas na conta do Twitter do Vereador Vini Castello, no orçamento da gestão do município foram recusadas emendas que aumentavam o recurso a ser destinado para as áreas de encostas, barreiras e habitacionais. Desde 2013, Olinda sofre com a obra interminável do Canal do Fragoso, que não importa o volume da chuva, sempre faz estragos no seu entorno. 

Enquanto isso, no Orçamento da União para 2022 somente R$ 1 bilhão foram destinados para o saneamento básico, em contrapartida aos  R$ 1,2 bilhão apenas para a aquisição de aeronaves e caças para a Força Aérea Brasileira – segundo apuração do Brasil de Fato. Neste episódio das chuvas, o Presidente Jair Bolsonaro visitou Jaboatão dos Guararapes, município que registrou o maior número de vítimas e que é base do deputado federal Anderson Ferreira, seu aliado.

Movimentos sociais e críticos encaram a ação do governante como uma mera politicagem, uma vez que o encontro não foi coordenado entre os gestores de todos os municípios para entender os cenários e realizar soluções integradas, mas somente com aquele que tem base eleitoral a seu favor. Além disso, a imprensa relembra que Jair Bolsonaro cortou recursos para a Gestão de Riscos e Respostas a Desastres este ano: 35,38% menor do que em 2021 e 45,6% se comparado a 2020, totalizando R$32,2 milhões para Ministério do Desenvolvimento Regional investir nesse sentido (Fonte: Congresso em Foco).

As medidas tomadas pela gestão da capital pernambucana não são exemplos. Em vídeo nas redes sociais, o prefeito João Campos divulgou a suspensão das festas juninas que acontecem no mês de junho no Nordeste para destinar os R$15 milhões injetados na cultura para a mitigação dos danos. Outros municípios seguiram o mesmo caminho. No entanto, a decisão vai na contramão do que a população precisa neste momento. Trabalhadores(as) da cultura estão há dois anos sobrevivendo com poucos recursos a partir de editais emergenciais surgidos nesse período e necessitam de verba para retomar os ciclos de apresentação. Diversos artistas se posicionaram destacando que trabalhadores(as) formais e informais também precisam ser valorizados(as) e que, muitos, estão dentre as pessoas atingidas pelos efeitos da chuva e pela política de habitação falha. 

Para resolver o que está posto, existem recursos de saneamento e infraestrutura, sendo, assim, desnecessário retirar de um elo fragilizado como é o caso do setor cultural. Fica evidente que existe uma política que desvaloriza o que é do povo e coloca trabalhadores(as) em oposição a outros(as) trabalhadores(as), quando, na verdade, todos(as) estão no mesmo barco em relação a quem está no poder.

As gestões têm metas estabelecidas no Plano Local de Ação Climática e no Plano de Redução de Emissões de Gases do Efeito Estufa, que visam a mitigação das mudanças climáticas pensando na segurança das pessoas que vivem em áreas de risco, como morros, encostas, beira do rio e canais, entre outros. Essas metas, inclusive, promovem não só a justiça climática, mas também a justiça social, uma vez que os resultados se reverberam em diversos âmbitos da vida em sociedade, como por exemplo, asseguram que meninas e meninos não deixem de frequentar a escola em virtude de enchentes e deslizamentos, efeitos da crise climática. Nesse sentido, faz-se urgente que as políticas públicas sejam criadas e/ou cumpridas, sem a espetacularização virtual que vem acontecendo nos últimos dias, com posicionamentos e comprometimentos vagos diante da população calejada.

Em paralelo, a mobilização solidária da sociedade civil tem cumprido o papel do Estado contribuindo para que as famílias consigam retornar às suas rotinas com o mínimo de dignidade e possam recuperar o que foi perdido. O CCLF é um dos pontos de arrecadação e tem se juntado com organizações de Olinda para realizar essa distribuição. Enquanto instituição que defende os Direitos Humanos e a Democracia, somamos à cobrança de medidas efetivas que garantam moradia digna e o acesso a outros direitos básicos para uma população que vive com quase nada e ainda lida com perdas por culpa das prioridades que o Estado tem mantido. Nos solidarizamos com as 100 vidas perdidas pela negligência do poder público e persistimos na luta para que esses nomes não sejam esquecidos. Que a vida seja valorizada e episódios como esse não precisem acontecer novamente.

Foto: Diego Nigro/ Prefeitura do Recife

Escrito por Marcelo Dantas¹ e Rebecka Santos²

¹Estudante de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e estagiário de comunicação do CCLF
²Jornalista e coordenadora do Programa Comunicação e Incidência e Direito à Comunicação do CCLF