Sueli Carneiro, Elza Soares, Conceição Evaristo e Marielle Franco são nomes de mulheres negras conhecidas pelo grande impacto que causaram na sociedade brasileira, no pensamento, na arte, nas lutas sociais. Contudo, é certo que são muitas as que foram silenciadas ao não serem citadas, estudadas e reconhecidas pela sua contribuição – tendo os seus saberes, pesquisas e conhecimentos negados.

Hoje, iremos falar sobre uma das maiores estudiosas do Brasil, que propôs a visão de um feminismo que lançou as bases para o feminismo interseccional e decolonial. Hoje, falamos de quem nos ensinou sobre o feminismo afro-latino-americano: a pensadora Lélia Gonzalez.

Mas para começar a falar da mineira nascida em 1935, deixamos aqui uma indagação da filósofa e ativista estadunidense Angela Davis. “Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”.

Graduada em História e Geografia, no que hoje é a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e depois em Filosofia, na mesma instituição de ensino, Lélia foi uma grande pensadora das questões raciais, de gênero e classe no país. Ela, que foi professora da rede pública de ensino e também do ensino superior, alinhava o conhecimento teórico com a prática ativista, estando presente em importantes momentos da história brasileira, como nas discussões da Assembleia Nacional Constituinte, no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, na fundação do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras e na gênese do Partido dos Trabalhadores (PT).

Autora dos livros “Lugar de negro”, em parceria com Carlos Hasenbalg, “Festas populares no Brasil”, além de vários textos reunidos em coletâneas, como a de 2020 chamada “Por um feminismo afro-latino-americano”, Lélia Gonzalez se valia da psicanálise e do candomblé como elementos essenciais para a compreensão da cultura e sociedade brasileira.

Buscando entender como o racismo se relaciona com a formação dos brasileiros e brasileiras, por exemplo, a antropóloga recorre à psicanálise e afrocentrismo para ir costurando as relações dessa formação com a estrutura patriarcal e desigual economicamente, que suscita no inconsciente um falso lugar de inferioridade da pessoa negra, ao passo que cria uma falsa sensação da superioridade do branco, que vem a dar as regras do jogo de relações de poder. Ela questiona: “Por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar?”

Outro ponto de grande destaque do pensamento da filósofa é a dimensão do território quando se fala nas desigualdades de raça e gênero, compreendendo elementos em comum das populações negras na América, trazidas e mantidas forçadamente num regime de trabalho desumanizador, que também se modificam culturalmente. Assim sendo, no território continental das Américas, o racismo opera de dois modos: por segregação e por denegação. O racismo por segregação se dá onde a colonização foi praticada pelos anglo-saxões, holandeses ou germânicos, que compreende negro o sujeito que tenha negros em sua árvore genealógica. O racismo por denegação se dá onde há grande parte da população ameríndia e amefricana, e se aplicam o discurso da miscigenação e democracia racial.

“Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra” – GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, 1984.

Ela refletiu atentamente sobre a realidade de exclusão das mulheres na sociedade brasileira, principalmente das negras e indígenas. Aqui no Brasil, ela foi pioneira nas críticas ao feminismo hegemônico e nas reflexões acerca das diferentes trajetórias de resistência das mulheres ao patriarcado, evidenciando, as histórias das mulheres negras e indígenas, no Brasil, na América Latina e no Caribe. O seu pensamento acompanha também a proposição de descolonização do saber e da produção de conhecimento e, atuando como (outsider within), como define Patrícia Hill Collins,3 questiona a insuficiência das categorias analíticas das Ciências Sociais para explicar, por exemplo, a realidade das mulheres negras.

E Lélia pergunta qual o lugar da mulher negra especificamente neste processo. Ela cita: O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós, o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular (GONZALEZ, 1984, p. 224).

E ela também provoca e ironiza: “Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas… Nem parece preto” (p. 226)

A autora tece duras críticas à invisibilidade de raça na maioria dos estudos feministas latino-americanos, com destaque para o Brasil, considerando a forte presença negra e indígena. Dizendo que “o feminismo latino-americano perde muito de sua força ao fazer abstração de um dado da realidade da maior importância: o caráter multirracial e pluri-cultural das sociedades da região”, defende a perspectiva antirracismo como elemento intrínseco aos princípios feministas. Lélia dizia que o Brasil tinha um papel importantíssimo na síntese de uma visão africana e de uma visão da diáspora. 

Lélia Gonzalez confronta a linguagem colonial. Em alguns textos, recorre a uma linguagem vista como fora do padrão estabelecido para o texto acadêmico. Não segue as exigências e as regras da gramática normativa, mas que, no entanto, reflete o legado linguístico de culturas escravizadas. Por isso ela traz o pretuguês, misturando o português com elementos linguísticos africanos, visando expor o preconceito racial existente na própria definição da língua materna brasileira. 

A contribuição de Lélia Gonzalez é difícil de ser medida, já que se expande a cada nova leitura, a cada nova menção, a cada nova indicação. Que o pensamento e prática de Lélia nos sirva de exemplo na construção de um mundo livre de opressões. Lélia, presente!

Referências para o texto:
O racismo na obra de Lélia Gonzalez
Intelectual e feminista: Lélia Gonzalez, a mulher que revolucionou o movimento negro
Lélia Gonzalez, onipresente
Lélia Gonzalez: o racismo estrutural
Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira

#JulhoDasPretas

 

Foto: Reprodução/Cultne