Nesta terça-feira (30), a Câmara dos Deputados pode colocar em votação a Medida Provisória sobre a estrutura dos Ministérios (MP 1154/23) e o Projeto de Lei sobre o marco temporal de demarcação das terras indígenas (PL 490/07), o que pode esvaziar as atribuições de dois Ministérios essenciais para a questão do campo, florestas, águas e bioma brasileiro: o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas e o Ministério dos Povos Indígenas.

As questões relacionadas ao campo são alvo de disputa desde a invasão dos europeus e continuam sendo alvo de um capitalismo predatório, principalmente com os latifundiários do agronegócio.

Diante da sempre atual pauta do campo, o Centro de Cultura Luiz Freire conversou na última quinta-feira (25) com Cícera Nunes¹, presidenta da Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape). Na ocasião, o calendário marcava o Dia do Trabalhador e da Trabalhadora Rural, importante data de luta para visibilizar as pautas dos(as) trabalhadores(as) do campo, denunciando violações e defendendo reivindicações históricas, como a reforma agrária brasileira.

Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF): De acordo com o Relatório Conflitos no Campo Brasil, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), o ano de 2022 registrou mais de dois mil casos de conflitos no campo, envolvendo cerca de 900 mil pessoas. Isso representa um conflito a cada quatro horas e um aumento de mais de dez por cento em relação a 2021. Qual é o papel do Estado no combate a esses conflitos? E esse papel tem sido desempenhado nos últimos anos?

Cícera Nunes (CN): Os conflitos no campo são históricos e existem há séculos. Por que eles acontecem no Brasil? Porque há desigualdade na distribuição de terras, desde os tempos das capitanias hereditárias. Desde então, as mulheres e os homens do campo passaram a trabalhar para grandes proprietários de terras. Ao longo dos anos, questões como trabalho escravo, falta de direitos, fome e assassinatos de líderes no campo se tornaram um enorme problema social no país. E onde está o Estado nisso? O Estado tem um papel fundamental na mediação e resolução dos conflitos, na garantia da reforma agrária para que mulheres e homens possam viver e produzir alimentos nessas terras. Por isso, a execução de políticas públicas pelo Estado é fundamental. Em Pernambuco e no Brasil, nos governos Temer e Bolsonaro, vivemos momentos difíceis, com aumento da violência e da fome, retirada de políticas públicas e desarticulação e extinção de órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que é fundamental para a realização da reforma agrária. A Fetape, junto com a CPT, tem acompanhado de perto os conflitos agrários, principalmente na Zona da Mata de Pernambuco. Uma das nossas conquistas foi a constituição, via decreto, da Comissão Estadual de Acompanhamento aos Conflitos Agrários (CEACA) pelo então governador Paulo Câmara, com o objetivo de mediar conflitos no campo e reduzir os crescentes índices de violência em disputas por terra. Atualmente, a comissão está desativada e precisa ser retomada urgentemente. Essa é uma das nossas reivindicações junto à governadora Raquel Lyra. No âmbito do governo federal, temos boas expectativas de que esse debate volte a ser prioridade com o presidente Lula, e que homens e mulheres tenham acesso ao direito à terra, além da redução da violência no campo. No entanto, é uma luta histórica, e a Fetape, desde seu surgimento há 60 anos, tem atuado pela reforma agrária.

CCLF: Os trabalhadores e trabalhadoras do campo sofrem com uma construção midiática por parte da grande imprensa, que ora os invisibiliza, ora os retrata de forma negativa, atrapalhando o agronegócio e outras formas exploratórias desse setor. Como você percebe os interesses por trás dessa campanha midiática contra os trabalhadores rurais?

CN: No Brasil, temos um sistema de comunicação muito concentrado. Se observarmos quem controla atualmente os meios de comunicação, veremos que são empresários, latifundiários e políticos, muitos deles ligados à igreja evangélica e ao agronegócio. Essas pessoas possuem seus interesses e desejam manter o poder, utilizando a mídia para manipular ideias e pensamentos, além de criminalizar os movimentos sociais e os trabalhadores rurais. Quem alimenta o país é a agricultura familiar, não o agronegócio. Quem defende a natureza, o meio ambiente, cuida das águas, das florestas e planta sem veneno são os indígenas, quilombolas, agricultores e agricultoras. No entanto, eles investem bilhões em uma propaganda intensa para construir a narrativa de que o agronegócio é popular. Na realidade, o agronegócio representa veneno e destruição do meio ambiente. Portanto, nossa luta é pela democratização da comunicação, pois a diversidade de ideias e pensamentos, uma comunicação feita nos territórios, fortalece a democracia. Fazemos parte do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC) e também atuamos por meio de nossa Escola de Formação da Contag (Enfoc), promovendo capacitações para comunicadores populares, educadores e educadoras sobre comunicação sob a perspectiva dos direitos.

CCLF: Segundo a pesquisa da CPT, os casos de trabalho análogo à escravidão no meio rural em 2022 representaram 2.218 pessoas resgatadas, a maior quantidade nos últimos dez anos. No entanto, o número de casos registrados não corresponde ao número total, pois as denúncias ainda são exceção. Em um país estrutural e historicamente racista, como a sociedade civil organizada pode ajudar esses trabalhadores que são colocados em situações desumanas?

CN: O trabalho escravo no Brasil atual é uma grave violação dos direitos humanos. As ocorrências registradas no Brasil ocorreram principalmente no meio rural, em fazendas e propriedades associadas ao agronegócio e ao extrativismo mineral. Ou seja, o mesmo agronegócio que quer criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outros movimentos sociais é responsável por 76% dos casos de trabalho escravo no país nos últimos 27 anos.

O trabalho escravo resulta em danos irreparáveis para as vítimas, como desenvolvimento de traumas físicos, lesões e doenças graves no organismo, além de sérios problemas de saúde mental.

Não podemos permitir que situações como essa ocorram no país. Precisamos denunciar e ter políticas para combater o trabalho escravo e apoiar as vítimas.

CCLF: A Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (FETAPE) desempenha um papel central na Marcha das Margaridas, que neste ano tem como lema “Pela Reconstrução do Brasil e Pelo Bem Viver”. Cícera, qual é a importância da Federação e da Marcha para a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais?

CN: A Marcha das Margaridas é coordenada pela nossa Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) e é a maior ação de mulheres do campo, das águas e das florestas da América Latina. Gostamos de destacar que a marcha acontece todos os dias, no dia a dia das mulheres, no trabalho dos sindicatos, das associações e das comunidades, e não apenas em Brasília, no Distrito Federal. Lá, na capital federal, ocorre o ápice dessa ação, quando ocupamos as ruas para mostrar nossas lutas e entregar ao governo federal nossa plataforma política. Em Pernambuco, nós da Fetape estamos coordenando a Marcha em parceria com outras organizações e estamos realizando, pela segunda vez, um curso de formação política com 80 mulheres que irão para Brasília. São lideranças sindicais que coordenam a Marcha em seus territórios e que, nesse curso, discutem os temas da 7ª edição da Marcha, como ecofeminismo, violência contra as mulheres, universalização da internet, comunicação e democracia participativa. A Marcha tem uma importância enorme na vida das mulheres, rompendo ciclos de violência, proporcionando formação, empoderamento e libertação, além de mostrar que nós, mulheres, podemos ser o que quisermos. Nessa construção, buscamos políticas públicas pensadas e propostas pelas mulheres que constroem este Brasil. Nesta edição, pretendemos levar 3 mil mulheres pernambucanas para a Marcha, e temos certeza de que será uma ação muito poderosa, pois estamos em um momento de reconstrução de políticas públicas e de retomada da democracia, que foi tão fortemente atacada nos últimos 4 anos.

CCLF: A reforma agrária ainda é possível no Brasil ou é um sonho?

CN: A terra é uma condição fundamental para o desenvolvimento da atividade produtiva e, no caso das mulheres do campo, da floresta e das águas, é essencial para garantir sua autonomia econômica. A reforma agrária é de responsabilidade do Estado brasileiro. Quando temos de um lado grandes latifúndios que não cumprem sua função social e, por outro lado, um grupo de trabalhadoras(es) rurais que não têm terra para morar e/ou trabalhar, o Estado tem o dever constitucional de desapropriar essa terra e distribuí-la entre as famílias que precisam, oferecendo também um conjunto de políticas públicas como moradia digna, infraestrutura, crédito e condições para produzir e comercializar sua produção, assistência técnica, acesso à saúde, educação, lazer, entre outras. Não adianta ter a terra se não houver condições adequadas para trabalhar e viver nela.

A política de reforma agrária foi uma das mais prejudicadas durante o governo Bolsonaro. Agora estamos em uma transição, com um novo governo. Sofremos muitas perdas, mas temos a tarefa de reconstruir toda a política de reforma agrária. Precisamos reestruturar o INCRA para que ele cumpra efetivamente sua atribuição de promover a democratização da terra por meio de novos projetos de assentamento, regularizações de territórios quilombolas e titulação das terras tradicionalmente ocupadas, além de realizar ações de regularização fundiária. Devemos pressionar também por um orçamento público destinado às políticas fundiárias e ambientais, garantindo a segurança das mulheres e das famílias em seus territórios.

Sempre dizemos que enquanto não houver terra para todos e todas, não teremos um Brasil verdadeiramente justo. Não desistiremos dessa luta, pois essa é a nossa missão. Reforma agrária já!

CCLF: Neste Dia do Trabalhador e da Trabalhadora Rural, qual mensagem você gostaria de deixar?

CN: Como agricultora, tenho muito orgulho do que sou, pois reconheço a importância do meu trabalho na geração de renda do país e na produção de alimentos. Apesar dos tempos difíceis, não nos deixamos abater e hoje estamos colhendo os frutos de nossa luta, com a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e várias outras políticas que fortalecem a agricultura familiar. É um sentimento de esperança, e podemos e faremos muito mais pelo nosso bem-viver e pelas próximas gerações. Agricultura familiar: cuidando da terra e alimentando o mundo.

¹Cícera Nunes da Cruz é sertaneja, natural de Serra Talhada, da comunidade de Pilãozinho. É agricultora familiar, feminista, assentada da reforma agrária no assentamento Poço do Serrote, localizado na zona rural.  Ingressou no Movimento Sindical Rural em setembro de 1998. Em 2018, é eleita a primeira mulher presidenta da Fetape. No 11º Congresso da Fetape, em 2022, é reeleita para o cargo por unanimidade. Sua trajetória tem sido pautada na luta por uma vida digna para homens e mulheres do campo.

 

Foto: Reprodução/ FETAPE